Nº 17, enero-julio 2024 - ISSN: 2524-9568
¿QUAL A AUTONOMIA DOS POVOS INDÍGENAS NA ERA DO NEOLIBERALISMO GLOBAL? DESENCRIPTANDO A POLÍTICA BRASILEIRA DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÌGENAS
WHAT IS THE AUTONOMY OF INDIGENOUS PEOPLES IN THE ERA OF GLOBAL NEOLIBERALISM? DECRYPTING TUEN BRAZILIAN POLICY OF DEMARCATING INDIGENOUS LANDS
MARIA THERESA DUARTE REIS1 MARINELLA MACHADO-ARAÚJO2
Resumo
A política de demarcação de territórios assegura a autonomia dos povos indígenas? O presente estudo parte da constatação de uma dissonância entre fato, norma e discurso, pois, apesar de existir um complexo normativo de proteção dos direitos indígenas que se concretiza, sobretudo, a partir da política de demarcação, que está inserida em uma modelagem internacional em prol do desenvolvimento sustentável, esses territórios demarcados são alvos de autorização administrativa de exploração mineral em violação ao direito de consulta prévia. Portanto, a partir da Teoria da Encriptação do Poder, buscou-se desencriptar o simulacro de autonomia produzido pela política de demarcação de territórios, valendo-se da análise documental da PET 3388/STF, do Estatuto do Índio, do Código Civil e da Constituição brasileira, pois evidenciam o não reconhecimento da capacidade civil dos indígenas, retirando-lhes, assim, um atributo base para exercício da autonomia e para validade do exercício do direito de consulta dentro da modelagem do Estado-nação, o qual neutraliza a dimensão multicultural, pois tem como condição precípua o reconhecimento do sujeito autônomo dentro dos parâmetros do individualismo, da propriedade privada e da legalidade, e cuja soberania, apesar de porosa, só é permeável a centros de poder vinculados à racionalidade neoliberal, que confere uma finalidade única do território voltada à exploração econômica. Concluiu-se que a demarcação de terras indígenas é uma política que visa uma “abertura” à diversidade cultural, pela perspectiva multicultural, mas, ao mesmo tempo, reforça mecanismos de controle e domínio do Estado nacional e dos interesses do capitalismo global sobre os territórios. |
Palavras-chave Teoria da Encriptação do Poder. Demarcação de Terras. Desenvolvimento Sustentável. PET 3388/STF. Povos Indígenas. |
Abstract Does the territorial demarcation policy ensure the autonomy of indigenous peoples? The present study starts from the observation of a dissonance between fact, norm and discourse, because, despite the existence of a normative complex for the protection of indigenous rights that materializes, above all, from the demarcation policy, which is inserted in an international model in For the sake of sustainable development, these demarcated territories are subject to administrative authorization for mineral exploration in violation of the right to prior consultation. Therefore, based on the Theory of Encryption of Power, we sought to decrypt the simulacrum of autonomy produced by the territorial demarcation policy, using the documentary analysis of PET 3388/STF, the Indian Statute, the Civil Code and the Constitution Brazilian, as they highlight the non-recognition of the civil capacity of indigenous people, thus removing from them a base attribute for the exercise of autonomy and for the validity of the exercise of the right to consultation within the modeling of the nation-state, which neutralizes the multicultural dimension, as its main condition is the recognition of the autonomous subject within the parameters of individualism, private property and legality, and whose sovereignty, despite being porous, is only permeable to centers of power linked to neoliberal rationality, which confers a unique purpose on the territory focused on economic exploitation. It was concluded that the demarcation of indigenous lands is a policy that aims to “open” to cultural diversity, from a multicultural perspective, but, at the same time, reinforces mechanisms of control and dominance of the national State and the interests of global capitalism over the territories. |
Keywords Power Encryption Theory. Land Demarcation. Sustainable development. PET 3388/STF. Indigenous People
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Introdução
No Brasil, existem 1,7 milhão de indígenas, o que representa a 0,83% da população total do país3, os quais fazem parte de 305 etnias diferentes4, falantes de 274 diferentes línguas. O norte do país concentra 45% dos indígenas brasileiros, nesta região, o estado Amazonas sozinho tem 460,9 mil indígenas, seguido da região nordeste, com 31% dos indígenas do país, no qual, o estado da Bahia tem quase 230 mil. Mas mesmo com essa concentração, há indígenas em todas as regiões e em todos os estados brasileiros, de modo que a maior parte da população indígena, cerca de 63% , vivem fora das terras oficialmente demarcadas pela Funai. Já quanto aos territórios demarcados, a Terra Indígena Yanomami, que abrange os estados do Amazonas e de Roraima e tem o maior número de pessoas indígenas, com 27.152 habitantes; o segundo maior número está na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, com 26.176 habitantes indígenas, seguida pela Terra Indígena Évare I, no estado do Amazonas, com 20.177 habitantes. (Brasil, 2023).
Diante dessa diversidade, seria a definição de base territorial o suficiente para garantir a autonomia de povos indígenas? Dado que as formas de apropriação da terra foram afetadas em diferentes graus pelo colonialismo e o neocolonialismo, o território é uma demanda consistente entre os povos indígenas, e a política de demarcação de terras, sobretudo, a partir da rejeição do STF à tese do marco temporal, em julgamento realizado no dia 21 de setembro de 2023, vem sendo compreendida como necessária para a sua autonomia como condição para a reprodução das relações entre os indivíduos e a coletividade a nível social, cultural, espiritual e simbólico.
Esta perspectiva está presente, normativamente, à nível internacional na Declaração da ONU sobre os direitos dos Povos Indígenas e na Convenção 169 da OIT, que reconhecem a autonomia dos povos indígenas, enquanto um sistema pelo qual podem exercer seu direito à livre determinação sob o marco de seus respectivos Estados, a partir dos elementos do autogoverno, base territorial, definição de competências e participação e representação política na vida nacional, especialmente, pelo reconhecimento do seu direito de consulta. Já à nível nacional, a Constituição de 1988¸ absorveu essa dimensão multicultural e pluriétnica, reconhecendo aos povos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam como forma de preservação da “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Brasil, 1988).
E dada a sua importância em face da produção econômica globalizada de exploração de recursos naturais, que ensejou a expropriação de territórios, culturas e saberes indígenas, a política de demarcação de terras se legitima está inserida em modelagem internacional em prol do chamado desenvolvimento sustentável, delineada pelas metas da Conference of the Parties (COP) e dos planos de estratégia da Environmental, Social and Corporate Governance (ESG), Agenda 2030, em especial pelos seus objetivos de redução de poluição da natureza, de uma governança responsiva, de erradicação da pobreza, redução das desigualdades, e fomento à agricultura sustentável, que implicam em iniciativas direcionadas à promoção dos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas, em prol de sua autodeterminação.
Porém, os territórios indígenas vem sendo, constantemente, alvos de requerimento de exploração mineral junto à Agência Nacional de Mineração, que, inclusive, tem aprovado, administrativamente, alguns desses requerimentos, mesmo que sobrepostos às terras indígenas, em flagrante violação ao direito à consulta, o qual tem seu fundamento na autonomia desses povos.
Em pesquisa realizada pela Folha de São Paulo (2023), identificou-se que no sistema da Agência Nacional de Mineração (ANM) havia, em novembro de 2023, 363 pedidos autorizados para exploração ou estudo dos recursos naturais dentro de Terras Indígenas homologadas no Brasil. Essa pesquisa foi feita a partir do cruzamento das coordenadas geográficas dos requerimentos feitos à agência com as informações geográficas dos territórios divulgados pela FUNAI, de modo que foram considerados apenas os pedidos ativos, dentre os quais há autorizações para pesquisa (a maioria), concessões de lavra para mineração e permissões de lavra garimpeira, não abarcando nestes números, as concessões anuladas
O resultado da pesquisa foi divulgado em reportagem no jornal eletrônico da Folha de São Paulo (2023) intitulada “Agência tem 363 autorizações de pesquisa ou exploração mineral em Terras Indígenas”, a qual identifica a Vale como a empresa com mais requerimentos autorizados, em 2023, para exploração dentro de Terras Indígenas, 12, quase todos no Pará, seguida pela Belo Sun, com 11 pedidos de pesquisa autorizados, todos no Pará, os quais impactam os Kayapó, que são os mais afetadas com esses pedidos.
A pesquisa cuidou, ainda, de questionar as empresas sobre a existência desses requerimentos, e foram apresentadas duas justificações. A primeira foi no sentido de que a maioria trata apenas de autorizações para pesquisa, que são a primeira fase dos processos, no qual apenas se estuda a viabilidade do empreendimento. Entretanto, é importante compreender que estes estudos já implicam em impactos ambientais e para a vida dos indígenas.
A segunda é no sentido de que a existência da autorização não significa que haja exploração dos recursos, ou mesmo pesquisa, sendo, ainda, possível que o requerimento tenha sido aprovado antes da demarcação ou que tenha acontecido um erro no processo da Agência Nacional de Mineração (ANM). Em ambos os casos, no entanto, a permissão não foi anulada pela agência reguladora e quem primeiro faz o pedido para determinada área, tem preferência para explorá-la, pois os requerimentos administrativos são analisados por ordem cronológica. Desse modo, a manutenção dos requerimentos sobrepostos a Territórios Indígenas (TIs), mesmo que sem atividade, serve de pressão para que a exploração seja legalizada, pois a empresa que já for detentora da autorização poderia iniciar o empreendimento.
Portanto, a existência dessas autorizações, que violam os direitos dos povos indígenas, é ainda mais grave em um cenário político em que o Congresso Nacional derrubou, por 321 votos a 137, em 13 de dezembro de 2023, o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao trecho do PL 490 que estabelece a data da promulgação da Constituição como marco temporal para a demarcação de terras indígenas e ao dispositivo que abre brecha para o garimpo, instalação de equipamentos militares e expansão de malha viária sem consulta aos povos indígenas ou ao órgão indigenista federal competente, além de essas autorizações coexistirem em um contexto em que há uma pressão política em prol de propostas para a liberação mineração em terras indígenas, de modo a alterar expressivamente o Estatuto do Índio, pois de 2020 a 2023 tramitou o Projeto de Lei 191/2020, já retirada pelo autor, mas com esta proposta.
Fato é que a autorização em si não quer dizer que haja a exploração nas TIs, o que seria ilegal, mas, certamente, escancara brechas no sistema de controle da ANM, que a partir de procedimento administrativo de autorização que cria um véu de legalidade à uma situação ilegal. Fato é que essas brechas estão imersas em uma arquitetura jurídico-político que tolhe a autonomia dos povos indígenas, cujo fundamento são normas que não lhes reconhece a capacidade, e a decisão paradigma do Supremo Tribunal federal sobre a Demarcação do Território Raposa do Sol (PET 3388/STF), na qual, sob a ótica da Teoria da Encriptação do Poder, fica evidente que a própria política de demarcação de terras indígenas não assegura a autonomia tal como prevista na Declaração da ONU sobre os direitos dos Povos Indígenas e na Convenção 169 da OIT, tanto em razão da forma como o direito qualifica os povos indígenas, quanto em razão de ser uma política calcada no discurso do controle soberano do estado sobre seu território, em prol da preservação cultural dos povos indígenas e no desenvolvimento sustentável das áreas por eles ocupadas.
Isto porque a atividade de mineração, dentre outras que se sustentam a partir da exploração da natureza, segue uma tendência de associar o desenvolvimento, este, supostamente, proporcionado por suas atividades, ao adjetivo sustentável, em uma tentativa de equilibrar exploração e preservação. Entretanto, todo esse cenário evidenciado vai totalmente na contramão dos acordos climáticos que o Brasil vem construindo globalmente5; da Agenda 20306; das normas de direito internacional sobre os direitos dos povos indígenas e, sobretudo, do modo de vida dos povos indígenas.
É certo que não há um modo de vida homogêneo entre os povos indígenas, dada a diversidade e a pluralidade desses povos, que variam em culturas, línguas, formas de organização social e política, dentre outros aspectos, inclusive, variam em relação à maneira de se relacionarem com o ambiente em que vivem. Mas se há algo em comum que se traduz como uma identidade do modo de vida indígena é, justamente, a relação sustentável que possuem com a natureza (PIB, 2024).
Isto quer dizer que os indígenas são naturalmente ecologistas? Não, a visão dos indígenas como defensores inatos da natureza, decorre de uma concepção de natureza própria do mundo ocidental moderno: a natureza como algo que deve permanecer intocado, alheio à ação humana. Entretanto, aos indígenas pode-se atribuir as estratégias de manejo dos recursos naturais sem alterar os princípios de funcionamento e sem colocar em risco as condições de reprodução do meio ambiente (PIB, 2024). Assim, tratar de um modo de vida indígena, é tratar da forma sustentável de manejo dos recursos naturais, compreendendo o meio ambiente como uma ampla rede de interrelações entre agentes, sejam humanos ou não-humanos (Latour,1966). Porém, não é com esta visão de sustentabilidade que as políticas que visam ao desenvolvimento sustentável se comprometem.
É pois, diante destes cenário em que há uma dissonância entre norma, discurso e os seus efeitos práticos, e considerando que esta pesquisa está vinculada ao Núcleo Jurídico de Política Públicas (NUJUP), propõe-se investigar a temática sob a ótica do simulacro, que é uma categoria teórica da Teoria da Encriptação do Poder (TEP), que dá o substrato crítico aos estudos propostos pelo NUJUP, um grupo de pesquisa multidisciplinar, que dentre os seus escopos de estudos, pontuo os instrumentos jurídicos emancipatórios de poder, as formas de planejamento e gestão democráticos, plurais do interesse público sobre o território e a efetividade de direitos fundamentais, mas sob o viés crítico da TEP.
Portanto, a presente pesquisa vale-se da Teoria da Encriptação do Poder, enquanto uma metodologia, cuja abordagem permite identificar quem se beneficia das distorções produzidas por determinadas políticas públicas (Sanín-Restrepo e Araújo, 2020), a partir da seguinte premissa metodológica aplicada ao estudo proposto: para que o direito (política de demarcação de terras indígenas) funcione como elemento constitutivo do capitalismo, o que (autonomia) e quem (povos indígenas) deve ser excluído de sua estrutura?
Pela autonomia dos povos indígenas?
A Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos Povos Indígenas e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reconhecem a autonomia dos povos indígenas, enquanto um sistema pelo qual podem exercer seu direito à livre determinação sob o marco de seus respectivos Estados, a partir dos elementos do autogoverno, da base territorial, da definição de competências e da participação e da representação política na vida nacional, especialmente, pelo reconhecimento do seu direito de consulta. É a partir dessas premissas que a Constituição brasileira se estabeleceu sob uma perspectiva multicultural e pluriétnica (Fajardo, 2011, p. 141), pautada no reconhecimento da autonomia dos povos indígenas, ao garantir-lhes os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam como forma de preservação da “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Brasil, 1988).
Entretanto, a realização efetiva de um multiculturalismo tem encontrado óbice na própria estrutura do Estado-Nação (Quijano, 2005, p.18), que neutraliza a dimensão do autogoverno, a partir de um sentido de autonomia que está atrelado ao individualismo, à propriedade privada e à legalidade, e que tem como condição precípua o reconhecimento do sujeito de direito para o exercício desta autonomia.
Porém, esse sujeito está, tradicionalmente, para o direito moderno, pautado na construção teórica de Immanuel Kant (2003, p. 80), que constroi a noção de indivíduo como um ser dotado de racionalidade e autonomia moral, capaz de agir de acordo com princípios éticos universais. Assim, para a corrente de pensamento Kantiano, de base liberal, a autonomia da vontade se coloca enquanto a capacidade de se autodeterminar ao tomar decisões racionais, e que confere à pessoa humana sua dignidade intrínseca e única.
Só que nesta construção teórica, a moralidade está completamente desconectada de qualquer elemento histórico e a ideia de autonomia tem um viés individualista. Assim, como é possível conciliar a universalidade proposta por Kant com a diversidade cultural e ética dos povos indígenas? E como a ética kantiana pode ser aplicada a culturas que valorizam a comunidade de maneira que diverge do individualismo implícito nas ideias kantianas de autonomia? Pois o resultado é violento. Nesta perspectiva, aqueles que não estão submetidos a esse sistema ético universal, não possuem o status de racional e, como consequência, autoriza-se atos que lhe ferem a dignidade, os quais são validados pelo direito.
Em Kant, a construção teórica de autonomia, ainda que seja a capacidade do indivíduo racional de legislar a si mesmo, se vincula à arquitetura de um Estado de Direito, pautado na legalidade (Kant, 2003, pp. 75-88), de modo que a autonomia está limitada por certas molduras legais, que garantem que as ações dos indivíduos estejam autorizadas previamente pela lei para produzir efeitos jurídicos.
Assim, é possível entender que a ideia de autonomia está imbricada à ideia de soberania, em que cada povo, entendido homogeneamente dentro dos limites de determinado território, se constitui em estado soberano, produzindo regras próprias com o respeito das demais pessoas jurídicas internacionais, dentro das quais há margem para que cada indivíduo possa autodeterminar-se, enquanto o poder para gerir livremente a sua esfera de interesses, orientando a sua vida de acordo com as suas preferências dentro dos limites da legalidade.
Ocorre que a legalidade se fundamenta em um povo que é tanto soberano, quanto a exceção, de modo que o que legitima o estado nação é a simulação da universalidade, em que uma “parte absolutamente arbitrária (pessoas brancas dentro de um estado-nação) define uma infinidade inatingível (povos marginalizados, migrantes forçados) ” (Sanín-Restrepo; Araújo, 2020, p. 7), o chamado povo oculto, dentre eles, os povos indígenas. Desse modo, a legalidade passa a ser instrumento de encriptação, pois se manifesta pela transferência da soberania do povo para a norma, de modo que a parcela arbitrária dita as regras dentro das quais é possível o exercício da autodeterminação, as quais excluem o povo oculto, mas que se legitimam em seu próprio nome.
Na realidade, verifica-se que a soberania do Estado-Nação, antes sólida, tem se mostrado porosa, permeável a centros de poder vinculados à racionalidade neoliberal (Sanín-Restrepo, 2018, p.199), que subjuga qualquer manifestação de diferença, homogeneizando a ideia de povo e impondo uma única forma de vida, pautada em uma concepção de mundo individualista em prol da proteção da propriedade privada.
Isto porque o conceito de autonomia, tem, ainda, como pressuposto, o território delimitado sob a perspectiva da propriedade privada, que remonta à construção teórica de John Locke (1994, p. 97-113), um contratualista que conferiu protagonismo à propriedade privada em sua teoria, elegendo-a como o mais importante instrumento para a realização individual. Assim, na gênese de um Estado de Direito, o direito subjetivo (ou a propriedade, como seu paradigma) e a liberdade negocial, são os mecanismos jurídicos, por excelência, de expressão da liberdade dos sujeitos privados na tutela dos seus interesses.
Desse modo, soberania, autonomia e propriedade privada são conceito inter-relacionáveis e que estão na base da fundação do Estado de Direito, de modo que a falta de um domínio claro sobre a terra, na perspectiva da propriedade, permite afirmar, dentro da construção teoria de Locke, que os índios não desfrutam de soberania política, e, portanto, permanecem em um estado de primitivismo político (Brown, 2010, p.48) e está é pois a chave conceitual que nos permite compreender o porquê de o multiculturalismo no Brasil não ensejar a real autonomia dos povos indígenas.
Fato é que essa perspectiva moderna de autonomia, de cunho individualista, substituiu a sua origem grega, em que etimologicamente, falando, a palavra é sinônimo de autogoverno e de independência7, mas não do indivíduo, na forma da autonomia da vontade, mas de um determinado governo, pois estava relacionada à independência política (ao todo), isto é, à capacidade de formular as próprias leis. Contudo, a centralização do poder político com a formação de estados nacionais é acompanhada, em um primeiro momento, pela exacerbação do poder soberano, mas também, em um segundo momento, com a ascensão do liberalismo, pela valorização da liberdade individual como fundamento para a limitação dos poderes do Estado, que visa à proteção dos direitos individuais, da livre ação econômica e do interesse privado, valores, hoje, tidos como universais.
Assim, o liberalismo político, capitaneou a transformação do conceito de liberdade individual, que passou a ser, juridicamente, qualificada como autonomia da vontade, à luz da racionalidade e da liberdade individual, com fundamento na propriedade, enquanto instrumento de acumulação e circulação de riquezas; no contrato, como sua forma excelsa de exteriorização; e na legalidade como condição para o exercício válido e eficaz.
Nesse sentido, a autonomia privada dentro da arquitetura jurídica do estado-nação se dá como condição para a aquisição e exploração da propriedade privada pelo indivíduo para a acumulação de riquezas, o que contrasta com a concepção de propriedade das comunidades indígenas, que possuem uma visão mais coletiva da terra, considerando-a como parte integrante de sua identidade e cultura, em que o direito à propriedade (como um direito humano de “primeira geração”) é completamente modificado para atender outros direitos dos povos indígenas (entre eles, o direito ao meio ambiente, à autodeterminação, o direito à cultura, etc.) (Ankersen e Ruppert, 2006. p. 737-8).
Porém, a autonomia que se pretende com a demarcação de terras, é justamente, esta concepção moderna, relacionada à exploração e posse sob a perspectiva individualista do território, não a autonomia voltada para a implementação de um modo de vida, que respeite, inclusive suas visões tradicionais de propriedade, em especial porque essa proposta de autonomia indígena, sob a perspectiva multicultural, tem sido justificada, inclusive em diversos planos normativos8, a partir de um ideal de desenvolvimento sustentável, seja para o desenvolvimento econômico e social, seja para o desenvolvimento ético, político e jurídico das instituições e pessoas. Mas como seria possível os povos indígenas se auto determinarem em um emaranhado de normas realizadas em seu nome, mas que os excluem em prol de interesses econômicos?
É certo que para o exercício pleno da autonomia que garanta a autodeterminação, deve-se conceber que o território tem implicações de caráter político, jurisdicional, administrativo, econômico, cultural, simbólico e ecológico e, portanto, deve se configurar como território autônomo para que os povos indígenas possam exercer seus direitos sociopolíticos e institucionais (Sánchez, 2009, p.72) o que não se vislumbra com a política de demarcação, a partir da qual os territórios demarcados se apresentam, limitadamente, como unidades produtivas, que atendem ao estado-nação e, principalmente, à noção homogeneizante de povo e, consequentemente, ao mercado, simulando a autonomia dos povos indígenas.
Denunciando a encriptação
O projeto de um multiculturalismo, fundado nos alicerces de uma democracia liberal, em que cada grupo étnico teria garantido seu direito de se manifestar e praticar sua cultura dá forma livre, como sustenta Will Kymlicka (1991, pp. 182-206 ), não se sustenta, na medida em que o “direito de escolha” pautado na liberdade e autonomia individuais, está inserido em Estado de Direito que institucionalizou as escolhas de um grupo hegemônico, submetendo os demais, como os povos indígenas, a ideais pré-concebidos incompatíveis com o seu modo de vida.
Quadro 1. O simulacro do multiculturalismo na PET 3388/STF |
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Processo que decidiu pela manutenção da demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, mas que estabeleceu algumas salvaguardas. |
Salvaguardas |
Valores Encriptados |
As “terras indígenas" versadas pela Constituição Federal de 1988 fazem parte de um território estatal-brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade, o Direito nacional. |
Legalidade, Soberania Sólida, propriedade privada, desenvolvimento sustentável, capacidade civil. |
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Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza político-territorial. |
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O substantivo "terras" é termo que assume compostura nitidamente sócio-cultural, e não política. A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão-só, em "terras indígenas". |
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Todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). |
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Conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência eventualmente malsã de certas organizações não-governamentais estrangeiras, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o inato sentimento de brasilidade. |
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O direito de prévia consulta às comunidades deve ceder diante de questões estratégicas, como a defesa nacional, soberania ou a proteção ambiental. |
Fonte: NUJUP (2023)
Assim, na prática, as políticas de caráter multicultural, dentro do estado-nação, propõem um “esquema jurídico que sirva de palco para a diferença, mas onde a diferença seja eliminada, em nome da própria diferença” (Sanín-Restrepo, 2018, p.170), pois se “abrem” à diversidade cultural, manifestam um relativismo cultural, sob uma perspectiva multicultural, mas, ao mesmo tempo, reforçam os mecanismos de controle e domínio do poder do Estado nacional e os interesses do capitalismo global sobre os territórios e os recursos naturais.
Esse processo é chamado por Slavoj Zizek (1997) como a nova lógica multicultural do capitalismo multinacional, que se manifestou em vários países latino-americanos desde os primeiros anos da década de 1990. Essa lógica ficou evidente no julgamento da PET 3388/STF, sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa do Sol.
As passagens textuais acima evidenciam como o judiciário, ao tratar da autonomia dos povos indígenas, no que se refere às condições de autodeterminação, o fazem, ressaltando os elementos do estado-nação, os quais sejam, povo, soberania e território, condicionando, pois, a autonomia desses povos, entendidos homogeneamente no conceito de povo, aos limites da legalidade, retirando, assim, qualquer possibilidade da diferença.
Nesse sentido, quando a decisão judicial afirma que sobre o território brasileiro incide, “com exclusividade, o Direito nacional” (Brasil, 2013), significa que os povos indígenas, enquanto a expressão da diferença dentro de um contexto hegemônico, ficam subjugados à arquitetura do Estado de Direito, e, portanto, ao modo de vida validado pelo direito já hegemonicamente estabelecido, em que as instituições não estão abertas aos movimentos contra-hegemônicos no âmbito da democracia representativa (Mouffe, 2013, p.22).
Esse raciocínio que impõe limites à autodeterminação dos povos indígenas está lastreado em um conceito de soberania de uma perspectiva sólida, que tem se justificado pela busca de um desenvolvimento sustentável. Isto, porque, os fundamentos da decisão têm como pressuposto um Estado brasileiro dotado de soberania, na perspectiva de um poder sólido sobre um domínio, com absoluta capacidade regulatória sobre ele (Brown, 2010, pp.59-60), daí a negação de uma autonomia indígena que garanta uma capacidade de autorregulação desses povos baseados em seu modo de vida. E esse Estado, dotado dessa absoluta capacidade regulatória, teria, portanto, a atribuição de tirar proveito das comunidades indígenas para “diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos)” (Brasil, 2013), sob a perspectiva do desenvolvimento sustentável, na medida que os povos indígenas seriam alicerces para promoção desse desenvolvimento, desde que submetidos ao poder jurisdicional soberano.
Entretanto, apesar de aparentemente apresentarem uma relação de interdependência, ao analisar a fundo, soberania, da perspectiva ora abordada, e desenvolvimento sustentável são conceitos inconciliáveis, sobretudo, para garantir a autonomia dos povos indígenas como condição de concretização de seus direitos, pois é uma agenda que está inserida em um sistema de governança global, em que a política nacional de proteção do meio ambiente está submetida às diretrizes de organizações supranacionais que envolvem uma rede de atores públicos e privados, que são os responsáveis pela definição de metas da Agenda 2030, da Conference of the Parties(COP) e dos planos de estratégia da Environmental, Social and Corporate Governance (ESG).
Esse sistema de governança global existe porque em um mundo globalizado e conectado pela internet, os limites temporais e espaciais foram rompidos (Latour, 1996, pp. 369-381), assim, não há fronteiras definidas, em especial, para os agentes econômicos, os quais se posicionam como outros centros de poder que se relacionam com o Estado, não em uma lógica hierarquizada, mas em rede. E é nesse contexto que se evidencia a existência de bens e funções, como os recursos naturais, que escapam ao controle do Estado e, que, portanto, são regulamentados em nível global por meio de uma rede atores públicos e privados que compartilham desses bens e funções, de modo que a centralidade do Estado tem se tornado uma ilusão de ótica (Cassese, 2005, p.670), pois se submete aos sistemas regulatórios globais que possuem a função de coordenação, promoção da cooperação, harmonização e padronização de políticas públicas.
Nesta perspectiva, a proteção do meio ambiente não depende só do Estado, pois ele depende de outros centros de poderes de dimensão transnacional, que atuam pautados nos interesses de grandes corporações, cuja faturamento seja de pelo menos US $ 5 bilhões em faturamento anual, que são as autorizadas a participarem do Fórum Econômico Mundial (World Economic Forum - WEF) que é, por sua vez, bússola para definir as estratégias ESG. Portanto, além de serem as grandes causadoras dos danos ambientais, ditam as diretrizes que devem pautar essa proteção, que se dá, pois, a partir de uma racionalidade neoliberal, e que permeia a estrutura dos estados, na medida em que os processos de tomada de decisão começam em a nível global, seja com um exame preliminar ou com uma decisão, e concluem a nível nacional, seja com uma decisão ou com a implementação da decisão (Cassese, 2005, p.685).
Em um contexto de soberania porosa, evidencia-se, pois, a existência de uma permeabilidade do estado por organismos internacionais no próprio jogo político, de modo que a representação nas democracias liberais passa a ser contaminada por interesses do capital, que se legitima, no jogo democrático, em nome de um todo oculto, apesar de excluí-lo (Sanín-Restrepo, 2016). E essa permeabilidade se evidencia ao verificarmos que as duas empresa com maiores números de autorização para exploração mineral de territórios indígenas demarcados são financiadas, majoritariamente, por capital internacional: A Vale passou em, 2021, por uma acentuada desnacionalização 24 anos depois da sua privatização, pois, do capital total da empresa, a parte minoritária é nacional ante a retirada do BNDESPar, de modo que a maior parte do capital estrangeiro é do fundo americano Capital Group e da gestora americana de fundos BlackRock Dynamic High Income (Guimarães, 2021) e somadas às participações menores, a Vale tem, ao total, 55% de estrangeiros em seu capital social; A BeloSun, por sua vez, é uma empresa canadense que, em seus empreendimentos, recebe financiamento internacional de gigantes da mineração, como a Sun Valley Gold, a Sun Valley Gold Master Fund, a RBC Global Asset Management e a 1832 Asset Management (IHU, 2019).
Portanto, em um mundo globalizado, pautado em um modelo neoliberal de exploração econômica, não há espaço para que essa sustentabilidade se dê a partir da perspectiva dos povos indígenas, mas é apresentada pela simples eficiência econômica estendida à gestão dos serviços da natureza, em que sustentabilidade se reduz ao não decrescimento do bem-estar e ao imperativo do crescimento econômico ótimo (Silva, 2010, p. 26), em que o foco não é evitar o dano, mas garantir a reparação financeira deste dano. Assim, a racionalidade neoliberal vale-se da arquitetura jurídica kantiana para validar e autorizar suas ações, mas desconsidera a premissa básica do pensamento Kantiano, que é o imperativo categórico, pois é uma sustentabilidade que não se fundamenta em uma ética ambiental pautada na intenção de agir conforme o dever (Kant, 2003, p.75-88), mas pautada nas consequências da ação, em que a preservação do meio ambiente visa um retorno financeiro.
Portanto, ao reconhecer que o processo de globalização enseja uma ressignificação do papel do Estado, a preocupação em alertar indígenas “contra a influência eventualmente malsã de certas organizações não-governamentais estrangeiras” (Brasil, 2013) em defesa da soberania, encripta uma realidade em que quem retroalimenta o poder político, ora produzido pelo Estado, são as grandes corporações dotadas de capital estrangeiro. Nessa perspectiva, utilizar do desenvolvimento sustentável para justificar a demarcação de terras indígenas, é um raciocínio que não se sustenta, já que o desenvolvimento sustentável está baseado em premissas do mercado econômico, incompatível com as práticas de sustentabilidade indígenas, que se sustentam em uma ética ambiental baseada em um modo de vida que não tem caráter mercadológico.
Assim, fica evidente que os argumentos pautados na soberania e no desenvolvimento sustentável para fins de justificar uma autonomia dos povos indígenas, se faz como meio de encriptar interesses econômicos que coordenam as políticas de proteção do meio ambiente em prol dos interesses do mercado, que rechaça qualquer manifestação da diferença. Nesse sentido, sob a perspectiva da Teoria ator-rede de Latour (1996), a gerência sobre as terras indígenas, tanto as demarcadas e as que venham ser, está mais acessível à organismos internacionais e empresas atuantes no mercado financeiro, do que pelos próprios indígenas que ali vivem, pois, a disponibilidade das terras é relativa “ a um certo tipo de distribuição do espaço, a um certo tipo de ordem, a uma configuração de poder” (Sanín-Restrepo, 2023, p.162), que é validada pelo direito.
3. O que está por trás: O poder de nomeação do direito
Falar sobre territórios indígenas (TIs) é falar sobre identidade, cultura, e sobre condição de existência de um povo. Mas o mesmo território que é condição para a existência, é apropriado pela norma como forma de composição qualificada de sujeitos enquanto condição para o reconhecimento de direitos, mas, também, para negar acesso aos povos indígenas a direitos, serviços e políticas públicas essenciais.
Isto porque o Direito, enquanto institucionalização das escolhas de um grupo hegemônico (Mouffe, 2013, p.19), é uma ferramenta de constituição da realidade, a partir da definição, qualificação e agrupamento de sujeitos e coisas, na perspectiva da Teoria da Encriptação do Poder (Sanín-Restrepo e Araújo, 2020, p. 12). Quer dizer, portanto, que os indígenas são aqueles que o direito, a partir da norma, define e qualifica como indígenas, porém, esse processo de definição e qualificação está permeado por jogos de poder que exclui e inferioriza seres.
Essas restrições são impostas a partir de modelos transcendentes (Estatuto do Índio, Código Civil, Constituição) que formam uma encruzilhada de sentidos permeados por jogos de poder (Sanín-Restrepo, 2023) que aprisionam o significado de índio, ainda na perspectiva integracionista, completamente contrário às políticas de caráter multicultural, mas de forma que esta contradição endossa critérios diferenciados e não regulamentados de capacidade civil do indígena, repercutindo na forma jurídica de transmissão dos territórios indígenas (TIs), tornando-os uma ferramenta de ocultação, exclusão e subordinação dos povos indígenas no Brasil sob o discurso da preservação cultural e do desenvolvimento sustentável.
Nesta perspectiva, é possível identificar como o texto normativo hostiliza o indígena, o qualificando como um ser “inferior”, como se estivesse em estágio inicial de “desenvolvimento”. E esse tipo de qualificação, reflete, pois, na forma como as políticas públicas em prol dos indígenas são desenhadas restringindo-lhes a autonomia.
Esses planos normativos são, pois, modelos transcendentes, por meio dos quais, se define a realidade na qual o ser é inserido e precisa tornar-se, por meio da composição e da decomposição de seres em totalidade ou singularidade que são anteriores ao indivíduo. Assim, na prática, o direito cria uma composição homogênea denominada “cidadão brasileiro”, dentro da qual criam-se novas composições homogêneas, dentre as quais, a denominada “povos indígenas”, de modo que o indígena, deve ser reconhecido antes como cidadão brasileiro, e após como integrante dos povos indígenas, para ter acesso à direitos.
Quadro 2. As qualificações impostas por modelos transcendentes |
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Modelo Transcendente |
Qualificações e Condições do ser indígena |
Art.215, § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. |
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Artigo 4º, Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência) |
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Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Parágrafo único. Aos índios e às comunidades indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas nesta Lei. |
Fonte: NUJUP (2023).
Essa dinâmica é, pois, o poder do direito, a partir da linguagem, de lançar “o manto do idêntico sobre o reverberante mundo da diferença” (Sanín-Restrepo, 2023, 62), de modo que a questão do simples e do composto passa a ser uma questão não apenas de jogos de linguagem (que fluem sobre uma superfície plana), mas de um 'jogo de poder' que estratifica as pessoas, pois há sempre uma composição que leva vantagem em nomear qualquer outra composição (Sanín-Restrepo, 2023, 61), e em um mundo cuja racionalidade neoliberal é imperativa, esta composição é formada por homens livres, capazes e proprietários.
Os sentidos que permeiam uma legislação que hostiliza o indígena, estabelecendo o sentido de um ser menos desenvolvido, incapaz, e que cria uma estrutura administrativa de Tutela, que é a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), apesar de, em um primeiro momento se mostrar incompatível com a Constituição Federal, vão guiar a interpretação daquele que é competente para aplicação da norma. Nesse sentido, ainda que haja, textualmente, certa contradição, são sentidos que sustentaram a decisão judicial na PET 3388/STF, na qual ficou estabelecido que o “direito de prévia consulta às comunidades deve ceder diante de questões estratégicas, como a defesa nacional, soberania ou a proteção ambiental” (Brasil, 2013), de forma completamente contrária às convenções internacionais, mas que encontra guarida em um Estado de Direito que somente válida a expressão de vontade do sujeito capaz, mas que não confere essa capacidade ao indígena.
É preciso, pois, ressaltar que essa vantagem em nomear funda-se no mito do “Estado de Natureza” como ponto de partida do curso civilizatório e que é superado por um contrato social, a partir do qual funda-se a figura do Estado como garantia do ser, e a sociedade europeia seria o estágio final, devido à disseminação do modo de vida europeu, por meio do processo de violência e controle sobre as subjetividades e a produção de conhecimento nas colônias.
Nesse sentido, o surgimento do estado de Direito pauta-se em dois elementos, a capacidade do indivíduo e a propriedade, estabelecendo, assim, um modo de vida necessário, dentro do qual a identidade do indivíduo enquanto indígena é formada pela existência ou inexistência de reconhecimento da Lei, cujo texto se forma a partir de jogos de linguagem, que estão permeados por jogos de poder, que associam essa identidade à uma imagem de inferioridade.
Tanto o é assim, que a posse é vinculada ao conceito de propriedade, e essa vinculação fica evidente no Código Civil que, ao acolher a teoria objetiva de Ihering (2005, pp.43-51), aproxima a posse da propriedade, em que para ter a posse de um bem basta o elemento “corpus”, uma vez que o Animus estaria implícito no poder de fato estabelecido em relação ao bem (por exemplo, terra), para fins de utilização econômica (Dantas, 2015, p.10). Assim, a posse exige apenas que o indivíduo proceda em relação à coisa como se comportaria o proprietário, mas “comportar-se como proprietário” não abarca a forma como o indígena se relaciona com a terra.
E é justamente esse sentido que permeia a tese do marco temporal, segundo a qual só poderia reivindicar direito sobre uma terra o povo indígena que já estivesse ocupando-a no momento da promulgação da Constituição Federal, porém, a posse tradicional não se esgota na posse atual ou na posse física da terra, dado que a relação do indígena com a terra não se limita à relação de propriedade, cujo sentido permeia a ideia de posse na arquitetura do Estado de Direito
Nessa perspectiva, apesar de a Constituição da República, em seu artigo 231, garantir aos povos indígenas os direitos originários sobre a terra, tradicionalmente, ocupadas por eles, o sentido de território indígena não se dá pela perspectiva dos indígenas, pois, também, está permeado por jogos de poder, que vincula terra/território à noção de propriedade, conferindo-o uma única finalidade voltada à exploração econômica e cujo acesso é fechado e distribuído com base em restrições impostas pelo direito (Sanín-Restrepo, 2023) ao qualificar pessoas.
E esse acesso é fechado, sobretudo, porque a democracia representativa exclui a participação de minorias. Veja que a tese do marco temporal foi declarada inconstitucional pelo STF em setembro de 2022; foi aprovada pelo Congresso Nacional em seguida; em outubro, o marco temporal foi vetado pela presidência, mas esta decisão foi derrubada pelo Congresso em dezembro de 2023, provando, assim, que o acesso à linguagem, sobretudo, aquela que recai sobre a minoria, está restrito a um grupo majoritário que valida suas ações contra essa minoria, mas em seu nome, por meio do procedimento legislativo.
Da perspectiva dos jogos de linguagem e jogos de poder, a demarcação, portanto, funciona como forma de criar composição, pois, apesar de a demarcação de terras ser um ato declaratório, e este ser compreendido como aquele que apenas declara – reconhece, afirma – uma situação que já existe, sem modificar a realidade, a verdade que estes atos também constituem uma dada realidade, já que aquele fato somente tem existência jurídica e, portanto, passa a integrar o emaranhado de direitos e deveres, quando reconhecido. Assim, sobre um fato não declarado, não reconhecido e que, portanto, não existe juridicamente, não recai direitos.
Sobre essa situação, importante destacar o Ofício Circular nº 18/2021/CGMT/DPT/FUNAI da FUNAI que visou sustar a prestação de serviços de saúde às terras indígenas cuja homologação não foi concluída, mas tal providência foi suspensa a partir da Liminar decretada no processo de nº 1.017.365, de Relatoria do Ministro Edson Fachin que determinou a prestação dos serviços. Porém, a União resistiu à prestação do serviço especial de saúde em terras indígenas não homologadas e nova decisão judicial, proferida na ADPF MC nº 709, de Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, determinou a prestação do serviço de saúde em tais terras. Porém, tais decisões apesar de determinar que os serviços do Subsistema Indígena de Saúde sejam acessíveis a todos os indígenas aldeados, independentemente de suas terras estarem ou não homologadas, fez a ressalva de que aos não aldeados, por ora, a utilização do Subsistema de Saúde Indígena se dará somente na falta de disponibilidade do SUS geral.
Essa é, pois, uma situação que evidencia o quão violento é esse poder de nomeação do direito, o qual, vale-se da demarcação de terras, como forma de estabelecer um conjunto de pessoas se serão ou não consideradas indígenas e, que, portanto, terão ou não acesso à uma política pública. E esse mecanismo reverbera inclusive nas decisões judiciais, que se vale de outro critério de qualificação e composição, que é o aldeamento, para estabelecer aqueles que terão ou não acesso à política pública, apesar de estar aldeado ou não, não retira a condição de indígenas.
Na mesma perspectiva, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) chegou a editar uma resolução voltada à heteroidentificação de povos indígenas, com base na situação territorial de suas áreas (Resolução FUNAI nº 4/2021), ou seja, aqueles que estão território considerado indígena, serão assim, qualificados. Portanto, é outro exemplo de como a demarcação de terras é utilizada como meio de composição e qualificação dos indígenas que tem, como consequência, a privação daqueles que estão fora da composição qualificada, à políticas públicas voltadas especificamente ao atendimento dos indígenas.
Portanto, o ato de reconhecimento de terras indígenas, com a demarcação do território, é um ato que constitui uma dada realidade, qualificando, compondo e decompondo pessoas, como forma de impor uma legislação nacional aos povos indígenas, que se faz sob o pretexto da proteção dos costumes e tradições indígenas em uma área delimitada, mas que, na verdade, frustra a autonomia dessas tradições e costumes, pois trata-se de imposição normativa homogênea, baseada em um único modo de vida estabelecido como necessário, sobre uma diversidade ontológica de normas criadas nas diversas comunidades indígenas (Laranjeira, 1984, p. 181).
Assim, a criação de uma identidade no âmbito de uma legislação nacional homogeneizante, implica sempre a criação de uma diferença, estabelecendo, assim, uma relação de nós/eles (Mouffe, 2013, p.35), que inclusive é acentuado com a demarcação das terras, em que se cria de fato uma barreira física entre nós/eles. Mas essa relação, em um mundo em que se fixa uma ordem necessária com a exclusão de outras possibilidades de vida, essa relação vira uma relação amigo/inimigo. Nesse sentido, à luz da Teoria da Encriptação do Poder (TEP), não basta que a norma reconheça a diferença se não há uma política de redistribuição dos recursos materiais de poder, sobretudo para acesso à linguagem, para que a diferença tome autonomia sobre esse poder de nomeação do direito, no que diz respeito à qualificação de sujeitos, para que seja feita a partir e para a diferença, reconhecendo o pluralismo enquanto dimensão constitutiva da política e não como algo deva ser reconhecido e validado pelo direito.
Conclusão
Recapitulando as ideias anteriores, no primeiro capítulo, discutimos sobre o conceito de autonomia e sobre suas raízes liberais para, assim, compreender sob qual perspectiva de autonomia a política de demarcação de terras pretende. Concluímos neste capítulo, que a autonomia que se pretende proteger com esta política pública está vinculada à uma concepção moderna e liberal de autonomia, relacionada à exploração e posse sob uma perspectiva individualista do território, que se dá nos limites impostos pelo estado-moderno. Assim, é uma concepção de autonomia que não se vincula à autonomia política e, portanto, à autodeterminação dos povos indígenas, sob uma perspectiva, verdadeiramente, multicultural.
É, pois, a partir desta constatação inicial de uma contradição entre a autonomia presente no discurso da autodeterminação dos povos indígenas e na autonomia, realmente, garantida pela política de demarcação de terras, que expomos, no segundo capítulo, a conclusão de que esta contradição entre o discurso e a política pública é, em inverdade, uma forma de simulacro nos termos propostos pelo Teoria da Encriptação do Poder (TEP).
Isto porque o projeto de um multiculturalismo, fundado nos alicerces de uma democracia liberal, em que cada grupo étnico teria garantido seu direito de se manifestar e praticar sua cultura da forma livre, não se sustenta na estrutura do Estado de Direito, em que a Autonomia está relacionado ao “direito de escolha”, cujas opções já são dadas pela arquitetura legal, que institucionaliza as opções de escolhas de acordo com valores de um grupo hegemônico, submetendo os demais, como os povos indígenas, à ideais pré-concebidos que são incompatíveis com o seu modo de vida.
Assim, na prática, as políticas de caráter multicultural, dentro do estado-nação, propõem um esquema jurídico que inclui a diferença, mas onde a diferença seja eliminada, em nome da própria diferença (Sanín-Restrepo, 2018), de modo que se “abrem” à diversidade cultural, manifestando um relativismo cultural, sob uma perspectiva multicultural, mas somente a nível do discurso, pois, ao mesmo tempo, reforçam, na prática, ou seja, na implementação da política pública, os mecanismos de controle e domínio do poder do Estado nacional e os interesses do capitalismo global sobre os territórios e os recursos naturais.
Concluímos, portanto, que a política de demarcação de territórios indígenas (TIs), produz um simulacro de autonomia, na medida em que encripta uma forma de domínio do Estado-Nação sobre territórios e recursos naturais em prol de interesses econômicos, mas sob o discurso do desenvolvimento sustentável e da preservação da diversidade cultural, calcados no poder soberano do Estado.
Pois, conforme demonstramos, essa soberania é porosa e está permeada por centros de poder vinculados à racionalidade neoliberal, como organismos supranacionais públicos, privados ou híbridos e organismos privados, que passam a compartilhar poder político com o Estado, de modo que a representação nas democracias liberais passa a ser contaminada por interesses do capital, que se legitima, no jogo democrático, em nome de um todo oculto, apesar de excluí-lo (Sanín-Restrepo, 2016).
Portanto, são os próprios elementos do Estado nação, soberania e povo, que são utilizados para limitar a autonomia dos povos indígenas, sob o discurso de “proteção” e viabilização do desenvolvimento sustentável, mas que se apresentam como condição para a violação de seus direitos, pois, conforme demonstramos, na Agência Nacional de Mineração (ANM), principal órgão governamental de regulação da atividade minerária, há, em novembro de 2023, 363 pedidos autorizados para exploração ou estudo dos recursos naturais dentro de Terras Indígenas homologadas no Brasil e as duas empresas com maior números de autorizações para exploração mineral de territórios indígenas demarcados são financiadas, majoritariamente, por capital internacional.
Logo, apesar de, aparentemente, apresentarem uma relação de interdependência, ao analisar a fundo, soberania, da perspectiva ora abordada - porosa, e desenvolvimento sustentável são conceitos inconciliáveis, sobretudo, para garantir a autonomia dos povos indígenas como condição de concretização de seus direitos, pois é uma agenda que está inserida em um sistema de governança global, em que a política nacional de proteção do meio ambiente está submetida às diretrizes de organizações supranacionais que envolvem uma rede de atores públicos e privados, que são os responsáveis pela definição de metas da Agenda 2030, da Conference of the Parties(COP) e dos planos de estratégia da Environmental, Social and Corporate Governance (ESG), mas que também financiam as grandes corporações que exploram recursos naturais sem compromisso real com a sustentabilidade pautada na prevenção de danos ambientais.
Portanto, em um mundo globalizado, pautado em um modelo neoliberal de exploração econômica, não há espaço para que essa sustentabilidade se dê a partir da perspectiva dos povos indígenas, mas é apresentada pela simples eficiência econômica estendida à gestão dos serviços da natureza, em que sustentabilidade se reduz ao não decrescimento do bem-estar e ao imperativo do crescimento econômico ótimo (Silva, 2010, p. 26), em que o foco não é evitar o dano, mas garantir a reparação financeira deste dano.
E o que está por trás deste simulacro? É o que na TEP se denomina de poder de nomeação do direito, que é um dos mecanismo de encriptação, por meio do qual se utilizada da legalidade (procedimento de demarcação de território, Estatuto do Índio, Código Civil e Resolução FUNAI nº 4/2021) e, portanto, da interpretação da norma, para qualificar sujeitos, especificamente, para qualificar os indígenas e suas terras, para em nome deles a política de demarcação de territórios se justificar, mas com a finalidade de retirar-lhes a autonomia em defesa do próprio Estado-Nação e ocultando sua existência (dos indígenas) enquanto povo.
Esse mecanismo de formação do simulacro, tem como principal sujeito encriptador o poder judiciário, neste estudo, representado pelo Supremo Tribunal Federal, que é o órgão de última instância que tem o poder de dizer o direito, em outras palavras, é por meio do processo interpretativo das normas que o judiciário define a autonomia dos povos indígenas e os qualifica, reforçando a estrutura do Estado-nação, no qual se compreende uma única forma de vida. Nesta perspectiva, foi por meio da decisão da PET 3388 que ficou evidenciado que os povos indígenas, enquanto diferença, não fazem parte da dimensão constitutiva da política, mas necessitam de um processo de reconhecimento e validação do direito que se dá por meio do poder judiciário.
É certo que a nível político, os povos indígenas se mobilizam em prol da demarcação de suas terras e em defesa de sua autodeterminação: Em 2021, próximo à COP 26, os povos indígenas sustentaram a sua importância para a solução da crise climática, apresentando como principais reivindicações dos indígenas, a demarcação dos territórios, que é considerada uma política fundamental para o equilíbrio climático e o bem-estar da humanidade (Galileu, 2021). Ainda em 2021, os povos indígenas enviaram uma carta que foi lida no 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia, a importância de incorporação de seus saberes e práticas nos processos agroecológicos. Em 2024, contra o marco temporal, os indígenas promoveram a 20ª edição do Acampamento Terra Livre pedindo o fim do Marco Temporal e a garantia dos direitos aos povos originários (Carta Capital, 2024), durante um governo em que houve a criação do Ministério dos Povos Indígenas, presidido por Sônia Guajajara.
Porém, em que pese essa mobilização, ao final quem definirá o sentido de autonomia não são os indígenas, mas os que possuem autoridade para dizer o direito (juízes), os quais contribuem para a manutenção da estrutura do estado nação, que nega, em suas gênesis, a pluralidade de povos e a sua autodeterminação. Assim, portanto, funciona o processo encriptação: Os conceitos de autonomia, povos indígenas e territórios indígenas são construídos a nível legal, por meio de um sistema representativo que exclui os povos indígenas, de modo que o sentido final desses conceitos é definido por órgãos competentes (juízes) que reproduzem e sustentam as estruturas do Estado nação.
Concluímos, portanto, que para garantir, realmente, a autonomia de povos indígenas dentro do Estado nacional, necessariamente, implica em transformações da própria estrutura de um estado-nação, que tornem possível o seu exercício, pois a autonomia é mais que o simples reconhecimento daquilo que já existe, ou daquilo que os povos indígenas praticam, mas em modificações na organização político-territorial que garanta a diferença imanente, de modo a permitir aos povos indígenas a livre condução dos seus modos de vida, enquanto se amplia sua participação política na sociedade nacional, para que os indígenas, enquanto povo oculto, possa de fato compartilhar poder com o Estado.
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1 Pós Graduação Lato Sensu em Advocacia Cível, Fundação Escola Superior do Ministério Público (RS, Brasil 2023).
2 Dra em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil 2002) Professor Adjunto IV da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil.
3 Esse dado foi apurado no Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 e foi 89% maior que o observado no Censo de 2010, dada a mudança no mapeamento e na metodologia da pesquisa, que passou a contar com a participação das próprias lideranças das comunidades para o processo de coleta de dados e ampliou as áreas de coleta para além das terras indígenas oficialmente delimitadas. (Brasil, 2023).
4 As etnias que se destacam pelo número de habitantes de acordo com o censo são as etnias Ticuna, Caingangue, Macuxi, Guajajara, Yanomami, Xavante, Potiguara e Pataxó (Brasil, 2023).
7 SKEAT, Walter W. An etymological dictionary of the English language. New York: Dover, 2005. p. 39. O conceito de autonomia é muito anterior à modernidade. De origem grega, αὐτονομία é a junção dos vocábulos αὐτος (autos), adjetivo que significa “próprio”, “por si mesmo” e νόμος (nomos), substantivo que significa “norma”, “lei” ou “regra”.
8 A Convenção n. 169, da OIT, traz em seu art. 15.1, importante disposição no sentido de que “os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos" E estabelece, no seu art. 19, que os programas agrários nacionais garantam aos povos indígenas condições equivalentes aos outros setores da população. Nos parágrafos desse dispositivo, há a preocupação com a sustentabilidade (ainda que a expressão não seja utilizada) da produção dos povos tradicionais, que deve sempre estar apta a atender às pessoas envolvidas, mesmo diante do crescimento populacional. A Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas é ainda mais contundente na harmonização entre o conceito de sustentabilidade e a necessidade de reconhecimento de direitos indígenas, ao pontuar, em seu preâmbulo, que “o respeito aos conhecimentos, às culturas e às práticas tradicionais indígenas contribui para o desenvolvimento sustentável e equitativo e para a gestão adequada do meio ambiente”. A Lei de Unidades de Conservação (Lei n. 9.985/2000) coloca como um dos objetivos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) o de “proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente” (art. 4º, XIII).