Experiência tradutória das cartas de Mariquita Sánchez ao português brasileiro

 

Translation experience of Mariquita Sánchez's letters to Brazilian Portuguese

 

Claudio Luiz da Silva Oliveira

Universidade Federal do Acre, Brasil

 

 

Resumo

Este trabalho parte da prática tradutória das cartas de Mariquita Sánchez como parte integrante da pesquisa de doutorado para obtenção do título de doutor em estudos da tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina. A pesquisa tem por objetivo fazer uma compilação das cartas deixadas por Mariquita Sánchez e traduzi-las para o português brasileiro. Como recorte para este trabalho, propomos apresentar seis trechos das traduções realizadas, explicando a utilização de determinados procedimentos tradutórios, com enfoque na estratégia de equivalência dinâmica proposta por Nida e Taber (1986), perpassando pela teoria da reescrita de Lefevere (1992) e da teoria da invisibilidade proposta por Venuti (1995). Acreditamos que esta pesquisa despertará o interesse nas traduções do gênero epistolar, principalmente nas que enfocam séculos passados e a escrita de mulheres hispano-americanas, as quais não tinham o direito a voz, sempre oprimidas por uma sociedade patriarcal.

 

Palavras-chave: equivalência dinâmica, tradução de cartas, binômio espanhol/português, Mariquita Sánchez

 

Abstract

This work is part of the translation practice of Mariquita Sánchez's letters as part of the doctoral research for a doctorate in Translation Studies at the Federal University of Santa Catarina. The research aims to compile Mariquita Sánchez’s letters and translate them into Brazilian Portuguese. As a thematic approach for this work, we propose to present six excerpts from the translations made, explaining the use of certain translation procedures, focusing on the dynamic equivalence strategy proposed by Nida and Taber (1986), going through Lefevere's rewriting theory (1992) and the invisibility theory proposed by Venuti (1995). We believe this research will spark interesting in translations of the epistolary genre, especially those focusing on past centuries and the writing of Hispanic American women, who had no right to a voice, always oppressed by a patriarchal society.

 

Keywords: dynamic equivalence, translation of letters, Spanish/Portuguese binomial, Mariquita Sánchez


1. Introdução

 

Nascida María Josefa Petrona de Todos los Santos Sánchez de Velazco y Trillo e posteriormente conhecida carinhosamente como Mariquita Sánchez foi uma importante figura feminina que viveu no século XIX na antiga colônia espanhola e hoje atual capital da Argentina, Buenos Aires. Sua história é marcada pelas inúmeras cartas trocadas tanto com seus amigos e familiares como representantes políticos da época. Nasceu em 1º de novembro de 1786, em pleno período de efervescência sociopolítica mundial, com grandes acontecimentos que viriam acontecer no início do século.

Os estudos realizados sobre ela narram uma mulher forte, «transgressora», patriota fervorosa e muito além do seu tempo. Além disso, podemos dizer que Mariquita era uma mãe amorosa e cuidadosa, foi mulher de dois homens que se sobressaíram na sociedade portenha por sua influência; o primeiro, Martín Thompson, foi pivô de uma das histórias mais famosas de Buenos Aires, tendo em vista a não autorização por parte dos pais de Mariquita para a realização do casamento entre eles.

Este trabalho visa analisar seis trechos de traduções feitas das cartas escritas por Mariquita e que comporão uma antologia epistolar, proposta para obtenção do título de doutor em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina. Objetivamos apresentar e discutir, amparados teoricamente, sobre os desafios de traduzir os trechos selecionados e o porquê de cada decisão tradutória.

No primeiro momento, traremos aspectos teóricos involucrados no que tange as características das correspondências e sua importância como forma de se adquirir voz pelas mulheres silenciadas em um período marcado pelo machismo e as práticas patriarcais de silenciamento das mulheres. Em seguida traremos a abordagem estabelecida como plano tradutório/metodologia de tradução, nos apoiando na teoria do tradutor dinâmico proposta por Nida e Taber (1986) para justificar teoricamente os trechos das cartas traduzidas na terceira parte deste trabalho. Refletiremos sobre o uso da correspondência como forma de aproximação entre emissor e receptor, o estabelecimento de vínculos sociais e afetivos entre os envolvidos na comunicação e o reconhecimento de que a carta era um meio eficaz de comunicação e do não-silenciamento da mulher do século XIX.

Vale a pena destacar ainda que a tradução epistolar se assemelha demasiadamente com a tradução literária. Por esta razão, nosso referencial teórico ampara a ideia de que para se traduzir cartas o tradutor deve se aproximar dos interlocutores missivistas devido a necessidade de compreensão dos seus sentimentos registrados na escrita. Traduzir cartas é traduzir emoções e sentimentos que não são seus, mas que devem ser sentidos para que consiga registrá-los no texto de chegada.

 

2. Cartas que falam

 

Segundo Jinzenji (2012), a escrita privada, como é o caso da correspondência, é uma das poucas formas de participação feminina no mundo da escrita, majoritariamente desenvolvida por homens, o que nos leva a refletir na quantidade de mulheres capacitadas intelectualmente que não puderam desenvolver suas habilidades de escrita por causa de um sistema patriarcal machista. Infelizmente, a escrita feminina não era permitida, já que as mulheres não eram consideradas preparadas intelectualmente para tal. Por esse motivo

 

[...] não houve funcionários proeminentes ou intelectuais que advogaram pelo reconhecimento da cidadania das mulheres, suas atitudes oscilaram entre a dura crítica das mulheres politicamente ativas e o elogio daquelas que fomentavam as virtudes domésticas[1] (Chambers, 2005, p. 81, tradução nossa[2]).

           

Sendo assim, as cartas funcionavam como um meio de exprimir os seus desejos, opiniões e argumentos em relação a algo. De acordo com Pereira (2004) as correspondências, assim como outras tipologias textuais que fazem uso da autoreferenciação, constrói um autor-personagem, aquele que fala de si mesmo e dos seus, assim como descreve fatos desde a sua própria perspectiva. Este tipo de texto tem a tendência do «mostrar-se» ou «abrir-se» para o outro, dando margem a uma visão identitária baseada nas linhas escritas. Assim, «os correspondentes se veem e se fazem ver pelo outro, ao mesmo tempo em que elaboram uma expressão literária de si próprios» (Pereira, 2004, p. 113). Há a construção e a ruptura de laços de amizade e/ou outros tipos de relações que podem se estabelecer a partir da troca de correspondência entre seus interlocutores.

A sociabilidade construída por meio das correspondências era uma forma da mulher interagir numa sociedade que a proibia de tal feito pessoalmente, em reuniões e conversas presenciais. Para Chambers (2005, p. 80) «as mulheres, que foram excluídas do serviço militar e cujos escritos permaneceram inéditos até a segunda metade do século dezenove, tiveram que buscar outros meios para conectar-se com uma comunidade nacional.»[3]

Sabemos que as representações se inserem «em um campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação» (Chartier, 1990, p. 17). Mas, como pensar em concorrência se as regras estabelecidas de luta entre gêneros são vergonhosamente desiguais? O homem sempre teve absoluto poderio em detrimento das obrigações femininas, que se restringiam ao cuidado doméstico. Por essa razão, podemos inferir que a carta foi uma dessas ferramentas representativas utilizadas por elas para que tivessem como expressar-se. Ainda em relação a posição da mulher em detrimento do homem na sociedade do século XIX,

 

A esposa não opinava, a família era o povo, o homem da casa seu governante, este por sua vez era quem elaborava as leis para que o “povo”, ou seja, a família, mais especificamente a mulher, era dado o direito de obedecer, pois esta poderia reinar no lar, mas as leis eram feitas pelos seus digníssimos cônjuges, pois a boa esposa representaria a honra do esposo. A esta se concedia o direito de ser submissa, trabalhadora (do lar) e calada. Mesmo em casa no momento em que o patriarca reunia a família, trazia discussões sobre política que era o tema principal da Imprensa local, não era de bom tom para as mulheres demonstrarem inteligência e opinarem, pois este assunto se reservara apenas para o mundo erudito masculino. Mas nem todas se mantinham obedientes, algumas opinavam mesmo não sendo ouvidas (Rodrigues, 2017, p. 60).

 

Foi o caso de Mariquita, engenhosa e habilidosa no trato social e político, capaz de articular-se socialmente para que suas visões políticas e sociais fossem levadas em consideração. Durante muito tempo, «[...] escrita e saber estiveram ligados ao poder como forma de dominação ao descreverem modos de socialização, papeis sociais e até sentimentos esperados em determinada situação» (Telles, 2006, p. 402).

Corroborando com a concepção de Bohrer (2015) afirmamos que as cartas definem o perfil bibliográfico de quem a escreve, justamente porque fatos, relatos pessoais e/ou sentimentais e confidências estão presentes nelas. Lendo as missivas de Mariquita foi possível traçar um perfil bibliográfico com características marcantes de elementos como força, influência política e social, fervor pela pátria, amor familiar, laços de amizade, insatisfação pessoal, entre outros. Para Bohrer (2015, p. 72) «a carta traz em seu corpo aspectos de um diário pessoal e marcas da prosa de ficção ao mesmo tempo, o que pode interferir na forma como esse texto é lido e compreendido pelo receptor», permitindo, dessa maneira, compreender aspectos da vida de quem escreve, além de seu ambiente familiar e social; as cartas se tornam, portanto, um importante objeto de estudo biográfico para caracterização de um sujeito que não está mais presente no nosso meio.

 

3. O tradutor dinâmico: proposta de um plano tradutório

 

Para Borges, a tarefa de traduzir é muito difícil, porque «um idioma é uma tradição, um modo de sentir a realidade, não um arbitrário repertório de símbolos»[4] (Borges, 1974, p. 857). De acordo com Schleiermacher (2010, p. 57) «ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tranquilo possível o leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro». Por esse motivo, no que se refere a tradução de cartas, é importante termos em vista um plano de tradução que vise ou aproximar o leitor do texto ou o texto do leitor. Saber lidar com os desafios que aparecem no ato tradutório requer um «tradutor dinâmico». Buscamos, estrategicamente, seguir com um plano de tradução coerente com as linhas teóricas em que acreditamos e cremos serem pautadas no tradutor dinâmico, aquele que traduz não somente estruturas linguísticas e termos léxicos, mas que busca a todo momento aproximar a sua tradução como algo inteligível no texto de chegada, de forma que o leitor sinta que está lendo o texto original.

Para alcançar tal objetivo, fizemos uso da estratégia de equivalência dinâmica proposta por Nida e Taber (1986) os quais propõem que

 

Ao invés de forçar a estrutura formal de uma língua com elementos distantes dela, o bom tradutor está disposto a fazer todas as mudanças necessárias para reproduzir a mensagem de acordo com as formas estruturais próprias da língua receptora (Nida e Taber, 1986, p. 19)[5]. 

 

Neste processo tradutório, Nida propõe um processo de descodificação do idioma original e a recodificação no sistema linguístico do qual o texto será traduzido, produzindo o mesmo sentido que o autor do texto original queria transmitir, mesmo que seja em uma outra estrutura linguística completamente distinta do texto fonte. O importante é que «o tradutor não perda nunca o norte, que não é outro senão conservar intacto o conteúdo, apesar de que para isto tenha que reestruturar radicalmente a forma, sempre segundo dita a língua de chegada» (Moya, 2007, p. 52).

Para cada tradução, devem-se considerar os diversos aspectos que são importantes para que o texto de chegada seja compreendido, como as visões de mundo, costumes/tradições, sentimentos, percepções do que cerca o autor quando escreve o texto, época em que o escritor viveu/vive etc. Ao se traduzir as cartas de Mariquita, levamos em consideração o estado de espírito, o sentimento que ela emana em cada carta escrita, o que deseja que o receptor da correspondência sinta ao ler o que escreve. Isso é traduzir o todo, não uma tradução mecânica pautada na versão de palavras.

Traduzir não deve ser um ato mecânico. Implica fatores que vão muito além da estrutura linguística pertencente a um idioma. Para Schleiermacher

 

[...] Se nas duas línguas cada palavra de uma correspondesse exatamente a uma palavra da outra, expressando os mesmos conceitos com as mesmas extensões; se suas flexões representassem as mesmas relações, e seus modos de articulação coincidissem, de tal modo que as línguas fossem diferentes apenas para o ouvido; então, também no domínio da arte e da ciência, toda tradução, na medida em que por ela se deve comunicar o conhecimento do conteúdo de um discurso ou escrito, seria também puramente mecânica como na vida comercial; e se poderia dizer de toda tradução, com exceção dos efeitos do acento e do ritmo, que o leitor estrangeiro estaria na mesma situação frente ao autor e sua obra que o nativo (Schleiermacher, 2007, p. 237).

 

Por fim, ainda acreditamos que é impossível o tradutor dinâmico ser invisível, já que terá que fazer alterações tanto linguísticas quanto estilísticas quando se propuser a transmitir aquilo que o autor do texto fonte deseja. Por essa razão, apoiamo-nos na teoria da invisibilidade proposta por Venuti (1995) e o processo de reescrita de Lefevere (1992) para tornar as cartas de Mariquita Sánchez plenamente compreensíveis para um leitor luso-brasileiro.

 

4. Traduzindo Mariquita Sánchez

 

Decisão tradutória 1: Ao traduzir as cartas de Mariquita Sánchez, primeiramente nos veio a dúvida: manter os aspectos linguísticos que remetem ao período em que o texto foi escrito ou adaptar suas estruturas sintáticas e a semântica para o período contemporâneo? Por fim, decidimos fazer todas as alterações possíveis para que o texto se aproximasse do leitor atual, baseando-nos na definição de tradução proposta por Schleiermacher (2007) descrita anteriormente, na qual afirma que o tradutor deve escolher entre aproximar o leitor da obra ou a obra do leitor.

Por essa razão, ao traduzirmos o pronome pessoal e os verbos conjugados em , em espanhol, optamos por traduzir você em português, tendo em vista que este pronome é usado nos casos que fazem referência a algo informalmente, conforme explicita Santos (2005, p. 24) quando afirma que «você é um pronome de 2ª pessoa usado na maior parte do Brasil em situações em que o tratamento dado ao interlocutor é mais íntimo». Além disso, passa-nos a impressão de um uso mais atual, já que este pronome de tratamento não seria usual no século XIX.

Decisão tradutória 2: Em relação ao uso das moedas correntes no período colonial argentino e depois da sua independência, nas cartas que Mariquita enviou para os filhos ela usa diversos tipos: duros, real, pesos, patacones, onza. Neste sentido, as três primeiras moedas um leitor atual poderá compreender, pois se trata de termos não tão antigos. Já os últimos dois são de uso bem anterior à época atual; por isso, ao usar em suas cartas «Te mandé ocho patacones y ahora te mando media onza» (carta enviada a seu filho Juan Thompson em 3 de fevereiro de 1840, grifo nosso), seria inviável traduzir os termos em destaque por «patacões» e «meia onça» para se referir às moedas usadas em Buenos Aires naquela época. Ao realizar uma pesquisa no dicionário da Real Academia Espanhola (RAE), decidimos pela seguinte tradução: «te mandei oito moedas de prata e agora te mando meia moeda de ouro». Assim, manteria o sentido, já que os termos traduzidos se referem ao tipo de material para se fazer a moeda.

Decisão tradutória 3: A seguir, apresento trechos em que há palavras empregadas para se referir a coisas iguais ou semelhantes:

 

 

Esta máquina la ha traído un buque en el que viajan muchos jóvenes que dan la vuelta al mundo.

 

Las gorritas tuyas las llevó un buque de la casa de Tressera.

 

El paquete trajo 25 pasajeros; pero los partidarios de aquel círculo dicen son mentiras y que está todo muy bueno.

 

Hasta que no vuelva no estaré tranquila, sobre todo por los riesgos de los paquetes este mes de temporales. Así, tiemblo por la vuelta. ¡Por Dios, que cuando se embarque vea bien el tiempo!

 

(grifos nossos)

 

 

Esta máquina foi trazida por um navio no qual muitos jovens viajam ao redor do mundo.

 

Teus gorros foram levados por um navio de carga da casa do Tressera.

 

O navio trouxe 25 passageiros; mas os partidários daquele círculo dizem que é mentira e que está tudo bem.

 

Até que ele não volte não ficarei tranquila, especialmente por causa dos riscos aos barcos de entrega neste mês de temporais. Por isso temo pelo retorno dele! Pelo amor de Deus, que quando embarque olhe bem para o tempo!

 

Ao consultar o dicionário da Real Academia Española (RAE), nos dá a seguinte definição de buque: barco de gran tonelaje con cubierta o cubiertas. Já paquete apresenta definições diversas, nenhuma delas relacionadas com barcos ou navio de entregas. No entanto, na mesma entrada para paquete, estava uma derivação dela: paquebote. Isso nos levou a definição: embarcación que lleva la correspondencia pública, y generalmente pasajeros también, de un puerto a otro. Para que nossa definição ficasse coerente e acertada, pesquisamos em dicionários de termos náuticos da língua espanhola, que nos mostram que paquebuque e paqueboque são sinônimos e se referem a embarcações que levavam encomendas e transportavam pessoas também (Palmer, 2015). Acreditamos que a forma de se escrever mudou no decorrer do tempo, substituindo-se o «u» por «o». Ao traduzir os termos para o português, decidimos pelo uso que mais se adequaria ao contexto de utilização, seja para o transporte de cargas ou passageiros.

Decisão tradutória 4: Observemos o uso da palavra «vara» no contexto e a respectiva decisão tradutória.

 

 

Me hablas de vender el corral o de lo que te han dicho sobre esto. Tú sabes que una vara es para mí una pena, como si me quitaran una alhaja.

(grifo nosso)

 

 

Fale-me sobre a venda do curral ou o que te falaram sobre isso. Você sabe que vender um metro para mim é muito difícil, é como se me tirassem uma joia.

 

No dicionário online Priberam da língua portuguesa, entre os vários significados arrolhados para «vara», temos: antiga medida de comprimento, equivalente a 1,10 m. Neste mesmo sentido, no dicionário RAE, obtemos a definição: Medida de longitud que se usaba en distintas regiones de España con valores diferentes, que oscilaban entre 768 y 912 mm. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, decidimos por facilitar a compreensão do leitor traduzindo o termo «vara» por «metro».

Decisão tradutória 5: atentemos para o uso da expressão nube muy negra e sua respectiva decisão tradutória:

 

 

De cualquier modo compadezco a su mujer y veo sobre esa familia una nube muy negra.

 

De qualquer maneira me compadeço da sua mulher e vejo sobre esta família uma nuvem muito pesada.

 

 

Apesar de na carta original Mariquita utilizar a expressão «nuvem negra» para relatar algo que denota azar, algo sombrio, opto por utilizar, na tradução, a expressão «nuvem muito pesada» a fim de evitar a conotação do negro com algo ruim, elemento extremamente preconceituoso enraizado em nossa sociedade. De acordo com Cláudia Silva (2018, n. p.) quando nos referimos ao espanhol e português «estão recheadas de expressões idiomáticas que carregam na sua história a escravidão, e que estão intrinsecamente carregadas de sentidos negativos e opressores». Compreende-se que naquela época seu uso era recorrente, no entanto, atualmente, é nosso dever como pesquisador e cidadão extinguir com o estereótipo do negro como sinônimo de maldade, algo ruim. Para esta decisão, me pauto teoricamente na teoria da invisibilidade de Venuti (1995), que acredito não ser possível em nenhuma tradução, sendo o tradutor plenamente visível.

Decisão tradutória 6: Algumas vestimentas e tipos de tecidos foram traduzidas para referenciar o momento temporal em que os textos das cartas foram escritos:

 

 

Te voy a hacer unos calzoncillos, que creo es lo que hará más falta por el calor (carta enviada a Juan Thompson).

 

Si pudieras mandarme un generito de lana bonito para forrar mi saco carmelita, para darle más largo y ancho y hacerlo una cosa decente, esto sería bueno. Alguna cosita como la bata de Julio, porque como ves que mi viaje se demora es preciso pensar en el frío. Necesito una pollera de franela blanca, ya sabes como las uso, con el ruedo de lo mismo y otra camiseta, que me haga Rafaela con las mangas más largas y menos larga del cuerpo. (carta enviada a Florencia Thompson)

 

El género de mi saco que sea bastante para las mangas anchas y esclavina, como uno que le verás a Mme. Blanc.

(grifos nossos)

 

 

Farei algumas ceroulas para você, pois acho que é o que te fará mais falta por causa do calor.

 

Se puder me enviar um generoso pedaço de lã bonito para forrar meu blazer pardo, para deixá-lo mais longo, largo e decente, seria bom. Algumas coisinhas como o roupão do Julio, porque como vê minha viagem se demora e é preciso pensar no frio. Preciso de uma saia de flanela branca, você sabe como as uso, e outra camiseta; que a Rafaela as faça para mim com as mangas maiores e menos frouxa no corpo.

 

 

 

Tomara que o tecido do meu blazer seja suficiente para as mangas maiores e a gola, como um que você verá com madame Blanc.

 

Apesar da palavra calzoncillos poder ser traduzida como cueca para o português, acreditamos que neste contexto, para uma referência temporal perfeita que alude ao século dezenove, optamos por traduzir o termo por ceroula, que era a roupa íntima utilizada na época. Essa escolha se dá devido a palavra ceroula ainda ser vista nas produções literárias brasileiras e na oralidade de pessoas de mais idade.

Vale ressaltar que a tradução dos termos de vestuário não foi tão simples, principalmente no que se refere aqueles já fora de uso, como esclavina, que ao se buscar palavras correspondentes no português, se tem maiores referências com o uso de uma pequena capa usada sobre a túnica dos clericais. No entanto, no contexto apresentado, sabemos que as mulheres daquele período utilizavam esta indumentária, mas atualmente não se vê mais o seu uso por parte delas. Sendo assim, o leitor brasileiro teria dificuldades em relacionar tal termo ao seu objeto significante. No texto da tese, acreditamos melhor fazer uso de imagem para ilustrar qual seria o objeto que estaríamos nos referindo, que reproduzimos a seguir:

 

Imagem 1 – Esclavina[6]

 

 

É possível inferir que a partir do uso de imagens para ilustrar o objeto ao qual queremos nos referir, estamos fazendo uso daquilo que Saussure (2003) define como sendo a relação entre significante e significado (imagem acústica e sentido), em que o leitor poderá inferir o sentido da palavra por meio da associação da imagem.

Apesar dessa possível associação e de um leitor que não tenha acesso à imagem para ilustrar o que seria, de fato, uma esclavina, optamos por utilizar o termo «gola», que atualmente é amplamente conhecido em qualquer tipo de roupa.

Essa problemática em tradução de vestuário acontece porque

 

Existe uma dificuldade geral dos profissionais de moda em encontrar terminologia adequada para designar as características e os elementos constituintes das peças de vestuário cuja designação desconhecem, tanto na sua língua materna como nas línguas estrangeiras com que trabalham. Tal como não existem registos em pt-PT, também não existem dicionários ou outros recursos multilíngues [...] fundamentalmente, concluiu-se que não existem registos escritos suficientes, documentação oficial sobre terminologia de vestuário pertencente a instituições da área, dicionários ou outros recursos que permitam uma rápida e eficaz tradução dos termos de pt- -PT para inglês e vice-versa (Silva, 2019, p. 2-3).

 

Outro termo de vestuário que traduzimos ao português foi saco. Consultando os dicionários de tradução bilíngue, encontramos as definições: paletó, casaco, jaqueta, blazer, entre outros que foram descartados por não apresentarem sentido contextual. Contemporaneamente, para mulheres, o uso do blazer é o mais usual, se analisarmos o contexto que a carta está escrita. É uma peça que está presente no vestuário feminino. No masculino, em português, usualmente empregamos o termo terno e/ou paletó.

 

4. Conclusão

 

Este trabalho objetivou, majoritariamente, colocar em discussão decisões tradutórias tomadas mediante as pesquisas realizadas para a tradução das cartas de Mariquita Sánchez ao português brasileiro. No primeiro momento, apresentamos a relação entre a escrita feminina e a utilização de cartas como forma de interagir nos assuntos sociopolíticos, proibidos para as mulheres no século XIX por um sistema machista baseado no patriarcalismo, deveras opressor; além disso, buscamos trazer elementos presentes nas epístolas que levam a uma integração entre emissor e destinatário.

Na segunda parte buscamos traçar um perfil tradutório, necessário para que o tradutor tenha um plano tradutório que o embase. Sendo assim, defendemos que o tradutor dinâmico seria o ideal para realização das traduções, levando-se em consideração as alterações que deveriam ser feitas no texto de partida para uma ampla compreensão no texto de chegada. O tradutor deve perceber quais as alterações necessárias e que ferramentas usar para que o texto de chegada seja coerente e coeso, permitindo ao leitor uma leitura fluída.

Na terceira e última parte trouxemos seis decisões tradutórias tomadas ao longo das traduções das cartas, justificando cada uma delas e mostrando as fontes de pesquisa que foram necessárias para que se chegasse à determinada decisão. Refletimos que o ato de traduzir exige de quem o faz um conjunto de habilidades internas e externas ao seu conhecimento linguístico, que envolvem critérios de tempo, lugar e estilo, além de muita pesquisa em diversas fontes de informações, inclusive de nativos da língua de partida.

Vale destacar que todas as cartas traduzidas foram compiladas por Clara Vilaseca e publicadas uma única vez pela editora Peuser no ano de 1852, em Buenos Aires. Por esse motivo o livro é difícil de ser encontrado atualmente; tivemos que encomendar da Argentina para que tivéssemos acesso. As alterações ortográficas para adequação ao tempo foram feitas pela compiladora.

 

 

 

 

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Referências bibliograficas

 

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[1] «[…] no hubo funcionarios prominentes o intelectuales que abogaran por el reconocimiento de la ciudadanía de las mujeres, sus actitudes oscilaron entre la dura crítica de las mujeres políticamente activas y el elogio de aquellas que fomentaban las virtudes domésticas».

[2] Todas as citações em língua estrangeira aqui foram traduzidas pelo autor. Por essa razão, ao citarmos no corpo do texto a tradução, colocamos o seu respectivo original em nota de rodapé.

[3] «Las mujeres, que fueron excluidas del servicio militar y cuyos escritos permanecieron inéditos hasta la segunda mitad del siglo diecinueve, tuvieron que buscar otros medios para conectarse con una comunidad nacional».

 

[4] «un idioma es una tradición, un modo de sentir la realidad, no un arbitrario repertorio de símbolos».

[5] «en vez de forzar la estructura formal de una lengua con elementos ajenos a la misma, el buen traductor está dispuesto a hacer todos los cambios formales que sean necesarios para reproducir el mensaje de acuerdo con las formas estructurales propias de la lengua receptora».

[6] Fonte: https://www.trajes-medievales.com/es/capas-medievales-y-capas-espanolas-herreruelo-pelerina-toquillas/11-18187-esclavina.html. Acesso em: 3 jun. 2020.