As interações verbais entre estudantes sob a perspectiva latouriana em uma oficina investigativa sobre magnetismo com cinescópios
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REVISTA DE ENSEÑANZA DE LA FÍSICA, Vol. 33, no. 2 (2021) 75
II. REFERENCIAL TEÓRICO
Bruno Latour (2011) em sua obra “Ciência em Ação” buscou apresentar sua concepção metodológica para estudos das
ciências e das tecnologias. É evidente que seu objeto de análise é bastante diferente do processo de ensino-aprendiza-
gem que se estabelece numa sala de aula de Ensino Médio. Buscamos nesse sentido a articulação entre a perspectiva
latouriana e a pesquisa de campo nas escolas do Ensino Médio, pela possibilidade da transgressão de seu uso e pela
perspectiva de sua utilização frente à produção da ciência educacional. Latour não transpôs suas ideias às salas de aulas
escolares, seus focos antropológicos e sociológicos são os grandes laboratórios de universidades de ponta, porém a di-
gressão de sua Sociologia da Ciência frente à Educação Básica não é só possível como cabível e exequível. A transladação
de um contexto a outro ganha sentido na medida em que não se coloca como rígido o critério de análise, no qual a
construção do conhecimento em ambiente escolar também pode ser observada em certa escala como elaboração cien-
tífica.
Segundo Oliveira (2006), outro foco de importância do pensamento latouriano emerge da maneira como são feitas
as descrições da atividade científica, condicionando o conteúdo às condições sociais dos envolvidos nas pesquisas, sub-
vertendo a aparente isenção dos enunciados de observação, lhes compreendendo como resultado de controvérsias que
depois serão resolvidas pelo convencimento, ou seja, enunciados que aparentemente estariam livres de qualquer vestí-
gio social são, na verdade, resultado de contínuas negociações (explícitas ou tácitas) entre cientistas. Nesse sentido, a
visão latouriana de Ciência é coerente com uma proposta de ensino de Física que vise não apenas a aquisição de produtos
científicos, mas principalmente a formação de uma cultura científica efetiva (Rodrigues e Vianna, 2013).
Portanto, Latour não está interessado na Ciência com “C” maiúsculo, que seria a “ciência pronta”, mas na ciência com
“c” minúsculo, em uma ciência ainda “em construção”. Sua proposta é investigar como se dá, na prática, o processo de
construção dos fatos científicos. Em resumo, Ciência pronta teria status de uma teoria científica ou artefato tecnológico,
já consagrada por um longo e complexo processo de consolidação. Ao transitar do estágio de ciência em ação para o
estágio de ciência pronta, um produto científico torna-se, como denominado por Latour, uma “caixa-preta”. Portanto as
ações efetivas do professor no tempo da atividade devem se encaminhar rumo à abertura dessas “caixas-pretas”. O autor
apropriou para a Sociologia da Ciência o conceito de “caixa-preta”, muito comum em Engenharia, um sistema ao qual se
atribui inviolabilidade, e até certo modo um grau inquestionável de verdade.
Como citado por Gama e Zanetic (2013), é possível que nenhuma palavra expresse mais a presença de caixas-pretas
intangíveis nas aulas tradicionais de física que “fórmula”, sugerindo diretamente a noção de algo pronto, estático e a-
histórico. No caso do Eletromagnetismo, quando um tópico como o da Força de Lorentz é abordado simplesmente ci-
tando-se a fórmula pronta F = q.v.B.sen(
) tornando-a tão somente um emaranhado de letras sem sentido ou profundi-
dade, despido de significado, articulação cotidiana, diálogo histórico-social e familiaridade ao estudante, cria-se o
precedente para o significado mais negativo possível que uma caixa-preta pode tomar: ser instransponível, hermética e
incompreensível.
Caixas-pretas são necessárias e não seria possível conviver com a tecnologia sem elas. Não é possível abrir todas as
caixas-pretas cada vez que se fizer necessário o uso de algum artefato ou teoria que delas deriva. Retomando o exemplo
anterior da Engenharia: quando uma caixa-preta será aberta diz-se que é iniciado um processo de “reengenharia”.
Educacionalmente, abrir a caixa equivaleria de certo modo ao problematizar freireano, promovendo a formação de
um senso crítico-metodológico a respeito do como a ciência se constrói, a consciência do “saber que é possível” como
consequência da formação. Conforme observado por Bachelard (1996), todo conhecimento científico advém de uma
resposta a uma pergunta: "se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico", nesse sentido cabe ao educa-
dor não se resumir a meramente apresentar respostas prontas, mas promover a aprendizagem dos questionamentos,
da indagação, da problematização, da busca. E mesmo naquilo que tange às escolhas sobre quais caixas devem ser aber-
tas e quais podem ser deixadas fechadas, deve-se compreender o processo que leva ao fechamento da caixa e não sua
mera contemplação quando já cerrada.
Latour explicita também a concepção de que a ciência é construída de modo coletivo e, de modo similar, a abordagem
CTS reivindica que este deve ser o mote da alfabetização científica em ambiente escolar, onde os atores sociais, no caso
os estudantes, participem e tenham autonomia frente à construção do conhecimento em sala de aula.
Ao professor durante a oficina investigativa caberá as ações que orientam as aberturas das “caixas-pretas” do produto
científico em análise, de forma a tirar o estudante de um estágio de contemplação a uma suposta ciência pronta e her-
mética, propondo e guiando aos estudantes às aberturas e investigações. Ao analisarmos as discussões de sala de aula,
devemos ter em mente que uma afirmação se consolidará em meio ao debate quando for capaz de atrair aliados, o que
se revela e se reforça no uso posterior que é feito dela na discussão. Dado que não seria justo de que se esperar que
estudantes do Ensino Médio estabeleçam discussões com a mesma consistência metodológica de um embate entre ci-
entistas, é importante que o professor, ao estimular a abertura das caixas-pretas, cumpra também este papel apresen-
tando questionamentos e estimulando o debate ao invés de lhes trazer respostas prontas.