A presença
da mulher nordestina na
democracia brasileira: o protagonismo na história oral de vida de Luiza Erundina
The presence of
northeastern women in brazilian democracy: the protagonism in the oral history of Luiza Erundina's life
Ana Cristina Gonçalves de Abreu Souza
Universidade Federal de Alfenas, Brasil
ana.abreu.souza@unifal-mg.edu.br
Marta Gouveia de Oliveira Rovai
Universidade Federal de Alfenas, Brasil
Resumo:
O texto aborda a trajetória de vida de Luiza Erundina,
que durante anos fez parte do quadro
político do Partido dos Trabalhadores (PT), sendo eleita a primeira prefeita da cidade de São Paulo nos anos de 1990 e hoje
deputada federal brasileira pelo Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL). A pesquisa não trata de uma
biografia sobre ela, mas de
um trabalho com história oral, com a finalidade de compreender como as memórias
sobre sua vida como uma mulher de origem nordestina e pobre, mas que conseguiu formar-se assistente
social e destacar-se como referência
política de trabalho ético e
dedicado à educação e aos movimentos sociais, contribui para provocar reflexões
sobre questões de gênero e
de classe que atravessam a sociedade brasileira. As narrativas de Luiza Erundina, por meio da metodologia da história oral, importam, também, para compreendermos a polifonia de sua voz em relação a grupos
invisibilizados e os diferentes significados atribuídos às relações
entre passado e presente na
voz de uma mulher cuja trajetória foi marcada por
estigmas de todo tipo, mas também pela admiração por seu comprometimento histórico com a cidadania dos chamados "excluídos".
Palavras-chaves: Luiza Erundina, memorias, experiências, mulheres nordestinas,
história oral de vida.
Abstract:
The text addresses the life trajectory of Luiza Erundina,
who for years was part of the Workers' Party (PT) political framework, being
elected the first mayor of the city of São Paulo in the 1990s and today a
Brazilian federal deputy for the Party Socialism and Freedom (PSOL). The
research is not a biography about her, but a work with oral history, in order
to understand how the memories of her life as a woman of northeastern and poor
origin, but who managed to graduate as a social worker and stand out as a
political reference for ethical work dedicated to education and social
movements, it contributes to provoke reflections on gender and class issues
that cross Brazilian society. Luiza Erundina's
narratives, through the methodology of oral history, are also important to
understand the polyphony of her voice in relation to invisible groups and the
different meanings attributed to the relations between past and present in the
voice of a woman whose trajectory was marked by stigma of all kinds, but also
by admiration for his historic commitment to the citizenship of the so-called
"excluded".
Keywords: Luiza Erundina, memories, experiences,
Northeastern women, oral history of life.
Introdução
Este artigo é uma
reflexão sobre alguns
aspectos das memórias pessoais
de Luiza Erundina de Sousa, de 86 anos,
referência de atuação ética
e comprometida com os movimentos sociais na política brasileira. Defensora da liberdade
e do socialismo, foi a primeira
e única mulher (e nordestina) a assumir
a gestão da maior cidade da América Latina, o município
de São Paulo, entre 1989 e 1992. Ela atuou em partidos de esquerda
como o Partido dos Trabalhadores (PT) do qual é uma das fundadoras, no
Partido Socialista Brasileiro (PSB) e no Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo qual é hoje deputada federal, cumprindo seu sexto mandato. Além de ser reconhecida publicamente como exemplo de atuação política,
procuramos dar ênfase ao seu papel como feminista e
educadora, atuando como assistente
social e professora inserida num
processo de luta e de resistência junto a grupos invisibilizados na história e com
os quais mantém forte relação pessoal
e coletiva: nordestinos e mulheres.
Não
pretendemos apresentar a sua
biografia neste breve
texto, mesmo porque sua trajetória
nos remete a vários debates que não
caberiam em nossa proposta aqui. Nosso objetivo é o de apontar algumas marcações identitárias nas suas memórias de expressão oral, que nos permitem refletir sobre os diferentes conflitos
sociais e as relações desiguais de gênero e raça na sociedade
brasileira. Acreditamos, baseadas em Losandro A. Tedeschi (2015), que a história
oral relativa às mulheres -historicamente deixadas à parte
por uma narrativa oficialmente masculina- volta-se a uma fala polifônica que carrega não apenas uma história individual, mas representativa de muitas outras que, como a entrevistada, sofreram
com o estigma num país historicamente racista, patriarcal e autoritário,
e que permanecem resistindo
contra práticas e discursos que pretendem
discriminá-las e excluí-las da cidadania:
Quando falamos de história das mulheres, referimo-nos a um processo de tomada de consciência
de si mesmo. Se um grupo ou
um indivíduo pensa historicamente, faz história oral. Ao narrá-la em si mesma, cria um processo de identidade a partir da experiência
da própria vida e dos sujeitos que a cercam.
Nesta perspectiva, a história oral enquanto método é signatária da nova história, que apresenta uma valorização
das experiências femininas
mediante uma nova forma de abordar a história, revisando modelos de significação
que estavam impregnados em todos os grupos sociais e visibilizando os fatores que silenciaram
as mulheres na história (Tedeschi, 2015: 334).
A reflexão
que apresentamos, portanto,
foi elaborada a partir do diálogo com
Luiza Erundina[1],
com quem nos encontramos com a proposta de que ela nos falasse de sua trajetória num processo constitutivo de ser mulher, nordestina, educadora e política profissional em diferentes contextos históricos, como na sua vivência
na ditadura militar
(1964-84) e na construção recente de uma democracia que até
o momento encontra-se fragilizada por negacionismos e
revisionismos defendidos por setores sociais e políticos reacionários
que tentam barrar conquistas na
educação e nos movimentos sociais ligados ao feminismo, ao combate antirracista e à luta
LGBTQIA+.
O gênero
de história oral utilizado nesta pesquisa foi o da história oral de vida,
de acordo com José Carlos
Sebe. B. Meihy (2005), pela qual
fizemos recortes e estímulos
ligados à infância de Luiza Erundina
no nordeste, à sua trajetória
como estudante, como assistente
social, educadora e à sua carreira
política, para que a entrevistada tivesse maior liberdade de conduzir sua própria
narrativa, selecionando e enfatizando a mensagem que desejava ser publicizada. Entendemos a história
oral de forma semelhante a Alessandro Portelli
(2010), como uma relação de
poder, em que diferentes sujeitos, intencionalidades e lugares sociais se encontram e negociam o registro multivocal das memórias de quem narra. Afirma ele que este é um
exercício que leva em conta as diferenças
que ali se encontram e
procura produzir uma “experiência de igualdade” na medida em que o direito de dizer é garantido e reconhecido na entrevista, que não é apenas uma troca de falas, mas também de
escutas. Desta forma,
afirma ele, ao assinarmos a
autoria de um texto que se originou de um encontro vivo, não apenas geramos uma fonte
oral, mas nos responsabilizamos pela voz que nos foi oferecida por quem se propôs a confiar suas experiências; exercemos uma escuta
sensível para a qual nos
tornamos mediadores em outras esferas. É importante sempre lembrar que a voz nunca é dada por nós, intelectuais, a pessoas dela destituídas,
porque esta lhes pertence e
nos é, seletivamente, concedida por alguém que reflete e filosofa sobre o que diz (Portelli, 2010). Os chamados subalternizados
não são destituídos
de voz, mas de espaços de escuta, como afirmou Gayatri Spivak (2010), e a história oral é um dos caminhos para produzi-los
mutuamente pelo diálogo e pelo reconhecimento
de que quem narra também exerce poder.
Pensar em Luiza Erundina
como uma mulher subalternizada não consiste em compreendê-la como vítima ou como destituída de voz e de ação sobre o mundo, até porque sua
própria trajetória aponta histórias de sobrevivência, de empoderamento e
de existência que não são apenas individuais, mas coletivas. Pelo contrário, o trabalho com a escuta atenta e sensível de sua voz é um posicionamento
que acredita que ao publicizarmos
dimensões de sua memória, a partir de sua própria voz, possamos produzir cada vez mais presença nos espaços públicos e compartilhamentos de lutas que combatem formas de silenciamento
histórico. Reconhecer a história
construída e sentida, por meio
de memórias de trajetórias
e experiências como a de Luiza Erundina,
coloca em evidencia a voz de autoria exatamente num contexto permeado
de construções históricas, políticas e sociais que se entrelaçam no agir do próprio sujeito, inacabado e em ação no mundo, como afirmou Paulo
Freire (1967), modificando a si, modificando ao outro, modificando o mundo e o
transformando de maneira permanente e singular.
A narrativa oral nos revela memórias
em processos contínuos de formação dos próprios sujeitos e grupos sociais,
identificando trajetórias, contextos e ações que revelam escolhas, lutas e aprendizagens. Para provocar reflexões
que nos permitam pensar as articulações
subjetivas e coletivas, as
narrativas da entrevista foram divididas e desdobradas aqui em três dimensões: a infância e a família, seus estudos e trabalho e sua trajetória política, com o
propósito de se compreender os trabalhos
de memória no presente de uma
mulher pobre e nordestina que se transformou
numa das maiores referências políticas do Brasil para os movimentos
sociais e também para a classe política em geral.
Memórias de uma infância indignada: uma construção em luta
Os estudos
sobre a subjetividade dos processos
formativos nos mostram características singulares e múltiplas em suas perspectivas teóricas
e práticas; uma construção humana que nos traz o
“devir”, um conceito importante para compreendermos
territórios e rizomas na trajetória contínua que atravessa cada um de nós (Deleuze & Guattari, 2011). A sujeita
desta pesquisa, Luiza Erundina,
foi escolhida a partir de estudos e indagações sobre as
marcas e presenças que se estabelecem
na construção subjetiva de uma liderança “mulher” na contemporaneidade,
em suas mais diversas
áreas, no processo de redemocratização
brasileira. A narrativa sobre si nos provoca a pensar sobre um
arcabouço significativo e
robusto que liga aspectos pessoais e coletivos na construção
singular de uma representatividade
“feminina”[2] nos espaços de poder em que predomina, ainda,
uma estrutura sexista,
racista, capitalista e cisteronormativa.
Que experiências
e práticas cotidianas de resistência
e existência são construídas na experiência de uma mulher nordestina e pobre, num processo histórico em que mulheres sempre foram colocadas à margem, compreendidas como “menores” considerando um sistema patriarcal em todos os espaços
de poder, principalmente nos de atuação política? Que
memórias são estabelecidas, na perspectiva de uma mulher, autora de sua prática, de sua fala e do seu
pensar, no processo de formação,
rememorando cenas, personagens, contextos e produções? Que referências
de pessoas, lugares, causas sociais
e identitárias foram selecionadas em sua memória presentificada para abordar a sua
trajetória, sendo hoje uma referência
de luta na sociedade brasileira?
Sobre sua origem social no estado da Paraíba, nordeste brasileiro, Erundina traz os marcadores da desigualdade e das dificuldades
que entre o começo e meados do século
XX atravessaram a vida de milhares
de nordestinos, obrigados a migrar para os grandes
centros, como São Paulo e Rio de Janeiro:
Eu era filha
de uma família de
nordestinos, dez filhos... Meu pai era artesão, fazia cela para cavalos. Minha mãe ajudava
meu pai fazendo bolo, fazendo café, vendendo na feira pra
poder sustentar essa familhada
toda. E numa região
de seca do Nordeste, lá no interior da Paraíba, que é uma
região que vez por outra tem uma grande seca de anos, né? E essa seca obriga as famílias pobres que não têm condição
de esperar outro ano de chuva e têm
que migrar. Meu pai levou a
gente duas vezes: uma delas eu
não era nascida ainda, a
seca de 1932. Na seca de 42 eu
já era criança, acho que tinha quatro ou
cinco anos, e era uma das piores condições de migração. E eu, desde muito criança, percebia que essa realidade não era justa, era uma realidade que a maioria tinha que migrar pra não morrer
de fome nem de sede e retornar depois que a chuva voltava.
Evidencia-se que já na
infância, diante de condições exigentes na busca pela
sobrevivência, revelou-se precocemente a compreensão da realidade, afirmando a narradora que já
percebia uma situação injusta que exigia o
migrar para que a morte não
chegasse. Posteriormente, quando
adulta, seja como vereadora,
deputada federal por seis vezes ou como prefeita,
na década de 1990, eleita
para administrar umas das maiores
cidades da América Latina em que a presença de nordestinos é significativa, ela elaborou suas
vivências transformando em bandeira
política questões como a reforma agrária
e a defesa de demandas de populações da periferia,
como o direito à própria terra, à moradia e à educação, estando presente, ainda,
no movimento de mulheres.
O lugar que Erundina ocupa hoje nos permite compreender a seleção de sua memória, da qual trazemos um
trecho significativo para apresentar/interpretar sua infância inserida em
problemas sociais que afetaram
sua vida. Ao se referir à sua consciência de menina sobre a
desigualdade, principalmente agrária,
seu tom vital[3] já
anuncia as marcas de sua coragem
como parte do processo coletivo
de migração, mas também de sua militância posterior assumida nas
comunidades eclesiais de base, na
luta pela terra junto à
Igreja Católica, em sua formação
acadêmica como assistente
social e em sua participação na política:
E eu
criança me intuí que alguma
coisa não tava certa. A questão
da propriedade da terra; alguns tinham terra
pra trabalhar, outros não tinham
terra pra trabalhar. E aí, precocemente, eu me dei conta de que era uma sociedade injusta, era uma sociedade desigual e o problema não
era a falta de chuva, porque quem tinha
terra acumulava água nos açudes construídos com o dinheiro do governo, que é dinheiro do povo, em terras privadas. Portanto, o
problema, e eu intuí isso
desde muito cedo: “O problema da seca no Nordeste não é a falta de chuva, é a concentração
da terra”.
Eu sempre
fui uma pessoa inquieta, questionadora, que não me conformava que as coisas aconteciam daquela forma, como se
estivesse tudo certo. Eu fui sempre uma pessoa que indagava, que me questionava também, sabe? Questionava também os outros e isso me levou a desembocar na política; primeiro na política profissional, depois na política sindical
(...), numa perspectiva com
o trabalho educativo.
A narrativa de Luiza Erundina traça um processo quase
que linear, ligando passado pessoal
e presente político, dando sentido militante à sua própria vida. O conceito de “ilusão biográfica”, desenvolvido
por Pierre Bourdieu (1998), contribui para compreendermos os sentidos da entrevistada em reconstruir sua trajetória: ao trazer aspectos recorrentes que se referem ao problema da terra e da situação dos nordestinos, importa menos a relação direta entre os fatos e mais a importância que eles ganham em seu relato, dando
sentido à vida de uma mulher
num contexto em que poucas conseguiram escapar do êxodo
rural, da pobreza, da opressão de gênero
e do preconceito. Ela constrói, por suas palavras e sua performance
serena, mas firme ao falar,
uma autoimagem de superação que nasceu de sua indignação pessoal na infância,
mas que ganhou dimensão coletiva ao amadurecer, identificando-se com a luta de famílias
e grupos que, como ela um dia, continuam a enfrentar
problemas relativos à concentração agrária. Ao abordar sua infância e sua “consciência precoce”, ela aponta
para tomadas de decisão e escolhas
que indicam a tensão entre
os sistemas econômicos determinantes da miséria e a liberdade que resiste
contra eles, construída nas
relações coletivas. Para isso, ela “convoca” ao diálogo suas experiências vividas na Igreja,
orientada pela Teologia da Libertação,
e nas ligas camponesas, nos
anos 1960, e a figura fundamental em sua formação e atuação profissional: o educador Paulo Freire[4].
Eu conscientemente decidi: “Não vou repetir esse modelo”
A historiadora Vânia
Vasconcelos (2018), ao desenvolver pesquisa sobre mulheres nos sertões nordestinos,
refletiu sobre as representações
em torno do “feminino”, associado
a comportamentos de submissão,
a uma conduta recatada e à resignação
a certo sofrimento dado
pelas condições econômicas,
pelo patriarcado e pelas crises de secas. No entanto, ao entrevistar mulheres sertanejas, ela demonstrou como os sertões brasileiros são espaços plurais e potentes, mesmo
que historicamente fossem e
ainda sejam associados à fome, à seca, a concepções de masculinidades ligadas ao
machismo e à agressividade. A autora trouxe para a reflexão as
narrativas orais de mulheres
que, segundo ela, demonstram
a ideia de um “feminismo sertanejo”, repleto de ações transgressoras contra dispositivos de poder; vivências de submissão, mas também de rupturas e de recriações
por parte de mulheres que cuidam
de seus filhos, que migram, mas que também criam autonomias
pelo trabalho e pelo estudo.
Boa parte das entrevistadas por Vasconcelos rejeitaram
o desejo de casar-se, nas
décadas de 1970 e 1980, substituindo-o pela vontade de ter uma profissão ou pelo enfrentamento à opressão
masculina.
Ao
construir sua autoimagem
como nordestina, mulher e migrante, Luiza Erundina é representativa desse
“feminismo sertanejo”, evidenciando uma memória de rebeldia e coragem; de rupturas
inclusive com a imagem de um feminino hegemônico.
Ela se refere ao fato de as mulheres de sua família, como suas irmãs e primas mais próximas,
se casarem cedo e reproduzirem
o modelo de família patriarcal, grande e pobre, submetida à fome, ao machismo, à instabilidade e à migração forçada. Sua coragem,
no entanto, não é apenas um elemento subjetivo, mas fruto das vivências
com mulheres como elas que estiveram ao seu lado na
escola, na universidade, na Igreja e nas lutas pela terra, assim como nos partidos em
que atuou, elegendo-se vereadora, deputada e prefeita. Com a fala firme, ela lembra de
como optou por romper com aquele modelo e aquele destino ao qual sua
família e os sertanejos em geral estavam fadados
como subalternos de um sistema desigual e opressor:
Percebi a necessidade
de transformar essa realidade,
de não me casar, não ter uma filharada, não ter um modelo e reproduzir aquele modelo que vinha de gerações e gerações. Eu rompi! Foi a primeira ruptura que eu fiz na
vida, do ponto de vista pessoal. Foi
exatamente romper com o padrão de organização pessoal de vida, de ter família, enfim. Porque eu descobri a política como sendo um instrumento mais eficaz para
se ajudar a mudar a realidade:
realidade social, realidade
econômica, a realidade
política, e pensar na perspectiva histórica de mundo,
não só de minha cidadezinha, meu país, mas uma perspectiva de
mundo.
Ao
se colocar como sujeito ativo
entre as mulheres de sua família, ela aponta
como a escola foi
fundamental para romper com a situação
social e de gênero. Ela afirma
que, inclusive, pediu para fazer
a 5ª série duas vezes, porque em sua cidade não havia
uma instituição em que pudesse dar continuidade à trajetória educacional. Para não
perder a oportunidade de estudar,
pediu para “reprovar” até
que sua família conseguiu sua ida para outra cidade, onde pode morar com uma
tia e dar sentido ao seu sonho. Estudar,
para ela, ofereceu condições para modificar sua situação social, mas sem deixar de se identificar com pessoas e grupos que ainda sofriam com
a seca, com o analfabetismo, com
a concentração agrária e com as opressões de gênero[5].
A entrevistada enfatiza como a educação também afetou a vida e a colocou em situação diferente de suas irmãs e prima. Ela percebeu que o estudo não apenas a libertava como mulher, dando-lhe autonomia econômica
e subjetiva, mas era um instrumento para atuar na política num momento em que poucas mulheres nordestinas se envolviam.
Em sua
narrativa, educação, religião
e militância social e
política não se separavam. Eram frutos de uma consciência que ela chama de intuição, desde quando era criança: “Eu não queria romper o vínculo com a escola”. Num esforço coletivo
da família, seus pais decidiram que ela iria para a cidade de Patos fazer o colégio, onde ela conseguiu uma bolsa juntamente com a sua prima. Dessa forma, ela conseguiu evitar que sua história entrasse para as estatísticas de crianças que eram obrigadas a parar os estudos, com a finalidade de ajudar os pais logo na infância.
Como o colégio era confessional,
Erundina se envolveu com a luta de uma
parte da Igreja, voltada para a reforma agrária e para a melhoria nas condições de vida dos trabalhadores submetidos ao latifúndio, uma herança colonial brasileira.
No II Concílio do Vaticano e da Conferência
de Medelín, entre 1962 e 1966, o Papa João XXIII defendia o compromisso da Igreja com os trabalhadores e com os pobres de forma mais progressista e humanizada. Na
América Latina, essa ideia
se converteu na Teologia da Libertação, na criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e nas pastorais, entre elas a Pastoral da Terra, da qual
Luiza Erundina participou ativamente, tanto na
região nordeste como no sudeste do país, para
onde migrou mais tarde. Ela tornou sua
“consciência individual” em militância
coletiva, principalmente após
cursar a faculdade de Assistente
Social:
(...) Depois
dos nove anos que eu fiquei
trabalhando, eu já tava na
militância política, mas assim,
lutando ligada a Pastoral da Terra, né? Voltada de novo à questão da terra, da terra rural, a luta da reforma agrária. Eu entendia que não era justo
concentrar tanta terra na mão de alguns poucos,
quando a maioria dos trabalhadores rurais não tinha as condições
de terra pra sobreviver com o mínimo de dignidade. Então, como assistente social, eu adquiri uma formação
que veio complementar a formação
que já tinha da minha formação cristã, religiosa, pelo trabalho na Pastoral da Terra. Eu trabalhava,
também, no colégio de irmãs de caridade e lecionava à noite.
Durante a ditadura
militar, especialmente depois do chamado AI-5[6],
Luiza Erundina veio para
São Paulo cursar o mestrado de Ciências
Sociais na Faculdade de Sociologia e
Política de São Paulo, agregada à Universidade de São
Paulo (USP), momento em que associou a luta social pelo direito à terra com a demanda pela moradia nos grandes centros urbanos:
Eu vim
pra São Paulo em 1971 e fiquei.
E, em 1971 mesmo, eu fui admitida, porque já tinha feito
concurso antes como assistente social da prefeitura. E aí fui trabalhar nas favelas e nos cortiços como assistente social. Descobri que a
luta era a mesma! A luta no
campo pela reforma agrária, pela divisão
da terra no campo. E na cidade, a divisão da terra, que também estava ociosa, sobrando, sendo
especulada, enquanto tinha pessoas amontoadas nas favelas, nos cortiços e embaixo de viadutos.
Como educadora, ela
também conheceu o Movimento Brasileiro de Alfabetização
(Mobral), um projeto criado pelo governo que não tinha somente
o objetivo de diminuir os
altos índices de analfabetismo, mas também estava voltado à implantação de um modelo para a formação de mão de obra, adotando uma educação
de concepção tecnicista em contraposição
à perspectiva libertadora do método Paulo Freire, que desde 1963 permeava o Plano Nacional de Alfabetização
e que foi abortado com o golpe militar de 1964:
Num momento de resistência da sociedade a um regime de força,
que era a ditadura militar, isso
tudo foram forças, energias e inspirações. Na experiência do método Paulo Freire, a gente trabalhou com os camponeses... Não conhecia Paulo Freire, mas usava seu método. Fui perseguida pela ditadura,
tinha suas razões, porque trabalhava com o método do Paulo Freire; enfim,
isso tem muita coisa que poderá explicar o fato de que eu nasci nesta origem
e ter vindo para cidade
grande.
Eu me lembro de que quando eu cheguei
em São Paulo, no ano de 1971, me caiu como trabalho, também na prefeitura, o Mobral. E eu encontrei
no Mobral uma equipe de profissionais e educadores, trabalhando
no Mobral. Pedagogos, outros
de outra área, mas sempre
da educação, e pessoas que vinham de antes, do modelo Paulo Freire; vinham do modelo da educação
emancipadora. E vinham aqueles
livros da Editora Abril, aqueles
montes de livro do governo,
né, produzidos pro país inteiro, pra servir pra todas as escolas
do país. Então, aquela
equipe que fez sob minha coordenação: “Nós vamos fazer material
clandestino, com os conteúdos
que a gente entende e interessa”.
Veja bem, em plena ditadura
militar, com o poderio que aquela ditadura tinha, com secretários,
como era um deles o Coronel
Ávila, que era um coronel da reserva...
Mais
uma vez a memória de Luiza Erundina deixa evidente o
inconformismo com certa realidade imposta pelas relações
de poder em diferentes dimensões. A lembrança daquela consciência, apresentada por ela como uma intuição
quando criança, vai se alinhando a outras rebeldias, na constituição de uma mulheridade fora dos parâmetros tradicionais e patriarcais -ousamos dizer uma
mulher decolonial- na luta contra latifundiários e no trabalho pela alfabetização das classes populares. É memória que escreve uma história
decolonial, que não procura preencher
lacunas, mas romper silenciamentos
e enfrentar as colonialidades de ser, saber e de gênero, como defendeu María
Lugones (2008).
Paulo Freire, que historicamente esteve ligado à história dos oprimidos e à concepção
de educação libertadora e emancipatória
é lembrado como alguém que a reconheceu
como esta mulher, sujeita
comprometida com o enfrentamento
às injustiças sociais desde criança, quando percebeu a desigualdade da terra, a fome, a seca e a imposição de um padrão colonial para o
destino de gênero. Em sua
narrativa, sua trajetória
se explica por essa formação
como uma educadora marcada pelo olhar
político que a atravessou desde criança:
(...) Paulo Freire dizia o seguinte: “Você não é política; você é educadora”. Aí ele corrigiu: “Não, você é uma educadora política”... Portanto, o viés como educadora, tanto para minha
formação como assistente
social, na minha militância política, tem tudo a ver. Na minha inspiração, na minha formação
e na minha atuação política havia muito desta perspectiva
pedagógica, educativa, conscientizadora e politizadora. Isso tem a ver com tudo
o que fiz... Com a assistente social que sou, com a vereadora que eu fui, a deputada federal que eu
sou. Fui a prefeita que fui
com uma marca muito forte desta
minha formação e deste meu viés
como educadora.
Este recorte nos
evidencia a sujeita do “dito e
do jeito”, da práxis (Vasquez, 2007) que revela a ação consciente e constante num processo em que a atuação
política foi transpassada
pelo ato de educar e pela importância da coletividade. O compromisso com a coletividade, num processo de atuação com e entre as camadas
populares e os movimentos sociais, na perspectiva da Teologia da Libertação e do
método Paulo Freire, foi o alvo
para a sua perseguição
pelo governo autoritário e,
posteriormente, por setores conservadores da sociedade. Depois do decreto do
AI-5, em 1968, que concentrava o poder nas mãos do Executivo, com poderes para censurar e
prender, entre outras medidas, ela
foi perseguida. Quando procurou voltar para a Paraíba, a
fim de dar aula na Universidade Federal, foi vetada
pela ditadura militar:
E neste
um ano, foi o ano de maior aperto na
década de 1970-71. Era o auge da repressão política,
da ditadura com a vigência do AI-5. E aí eu fui ameaçada... Eu vivia sendo ameaçada
de perseguição e começou a
desaparecer gente que tinha militância
com a gente, gente que morria.
Tinha um estudante de medicina que trabalhava
com outra menina que também fez Serviço
Social, depois. E uma amiga
minha que era freira, irmã
do Porto, que foi o colégio
onde lecionei. Ela tinha um parente
lá no comando militar do Recife, que era um quarto comando militar das Forças
Armadas. Ela foi consultada
sobre qual era a minha situação política e ele recomendou que era melhor eu sair de lá. Havia riscos reais de eu desaparecer ou ser presa, que
era melhor eu sair de lá. Porque exatamente eu tinha um
vínculo com a Igreja, trabalhando
com o camponês, trabalhando numa região que tinha havido o massacre das ligas camponesas. Então, estava tudo ligado.
O processo de redemocratização
e o papel das mulheres
Eder Sader,
em seu livro Quando novos personagens entraram em cena
(1988), aponta como a partir de 1974 novos grupos tomaram os espaços públicos, no combate à ditadura
militar. No final dos anos 1960 e entre os anos de
1970 e 1971 -como lembra Luiza Erundina- a repressão aos grupos armados, ao movimento estudantil,
às ligas camponesas e aos operários desembocou
em tortura, exílio e assassinato
e no desmantelamento das organizações
militantes. Sobre aquele momento de “esvaziamento” político, Sader nos
convida a reconhecer outras
formas de luta que começaram
a se destacar no cenário
social e político e que também
contribuíram para questionar
e desestabilizar o autoritarismo: donas de casas organizadas nos Clubes de Mães, na igreja, Comunidades Eclesiais de Base, novos
sindicatos e associações de bairro
começaram a se constituir e
a ocupar espaços. Para o autor, com
as fragilidades da ditadura (dadas
pela crise econômica
devido aos endividamentos externos e pelo aumento do preço nos barris de petróleo), inaugurou-se nova forma de fazer
política, que ainda evidenciava
as contradições geradas
pelo capitalismo, mas que não
estava orientada por pautas mais
ideológicas (devido à grande repressão
que se abateu sobre os grupos militantes e armados).
A originalidade
da atuação política estaria
no padrão comunitário e em
novas formas de se pensar o direito
e a justiça, na luta contra a carestia e pela anistia de presos e exilados
políticos. Mulheres da periferia, em especial aquelas que não haviam se envolvido diretamente nos grupos anteriores, tiveram
presença marcante nesse processo político, inserindo-se
em lutas locais e no espaço público, demonstrando que as tentativas de silenciamento em
anos de autoritarismo não resultaram
em silêncio e subalternização.
Nessas resistências, as memórias de Erundina também se inserem. Ela se refere à organização política de novas associações
e sindicatos em torno de políticas públicas junto à população
em busca de melhorias na saúde, na educação,
por saneamento básico e por creches: “Quer dizer, era uma luta por direitos sociais da população através de profissionais não só de Serviço
Social, mas de outras
áreas, enfrentando os governos ditatoriais
e empoderando a população das favelas, dos cortiços”.
Sader
afirmou que essa percepção e auto-reconhecimento
cada vez maior das mulheres
se deveu, em parte, ao crescimento de sua participação no mercado de trabalho:
correspondiam a 28,2% no ano de 1970 e passaram a 32,8% em 1980. Cargos antes destinados aos homens, nos setores industrial e comercial, foram sendo ocupados por elas. Luiza Erundina é
representativa daquelas que, por meio
do estudo e da militância
política, conseguiram “abrir brechas” nas estruturas e ocupar a arena
pública, em meio à tática
cotidiana fora dos estereótipos
absolutos, conquistada todos os dias pela necessidade de mudança.
Erundina
se refere, em sua trajetória pessoal, à sua relação íntima com esses movimentos
sociais liderados por mulheres
em São Paulo, principalmente ligados à reivindicação
por creches e moradia, o
que Sader (1988, p.147) chamou
de ação comunitária pela
vida. Marta Rovai (2014), que entrevistou
mulheres de operários que atuaram em São Paulo entre as
décadas de 1960 e 1970, também destaca que a luta pela anistia política, no
Brasil, foi iniciada e
liderada por sujeitas das camadas populares e de classe média que desejavam ver transformações,
tanto relativas às condições
de vida quanto à própria democracia.
O retorno das exiladas, a partir de 1979, também permitiu a constituição de um feminismo brasileiro atravessado
por questões políticas de combate à ditadura e pela reivindicação de direitos relativos às classes, raças e gêneros.
De acordo com
Céli Pinto (2003), entre concepções
diferenciadas sobre a luta de mulheres
e o feminismo mais intelectualizado e politizado, surgiam pautas em comum sobre questões como a autonomia do corpo e da vida feminina, mas também sobre a carestia e
políticas públicas voltadas ao
trabalho, à maternidade e à
melhoria na infraestrutura dos bairros[7].
São fatos também narrados pela entrevistada que insere sua experiência
nesse processo e que, em
1980, foi convidada por Luís Inácio
Lula da Silva, um dos líderes da greve
de operários no ABC paulista, a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT), fruto do processo
de retomada da pluralidade partidária,
do movimento operário, do
retorno de exilados, da atuação da Igreja progressista e da luta das mulheres contra a carestia e pela
anistia. Nesse processo, outras militantes com trajetórias políticas e origens sociais diferentes se juntaram ao Partido, como Irma Passoni, Lélia Abramo e Marilena Chauí. A luta pela terra, na qual
Erundina estava inserida
desde a década de 1960, por meio
das ligas camponesas e da Pastoral da Terra, também ganhou força
com a formação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em 1984, que durante anos
teve estreita relação com o PT.
Uma mulher com a força da coletividade
Luiza Erundina foi
eleita vereadora da cidade de São Paulo nas primeiras eleições municipais, em 1982, ainda sob controle da ditadura que teve
seu fim em 1984. Como
representante de educadores e de setores populares, ela se tornou deputada estadual,
em 1986, quando os debates para a elaboração
de uma nova Constituição ganharam força e setores progressistas e
conservadores se enfrentaram. Entre as demandas, a permanente reinvindicação
da reforma agrária que ainda
hoje segue a “passos lentos” no Brasil e a não criminalização dos movimentos sociais. Sua atuação
política no Congresso Nacional levou
o PT a lançá-la como candidata a prefeita
em 1988, eleição que ganhou
com votos que vieram dos bairros periféricos de São Paulo e também
rompendo uma estrutura partidária de militância majoritariamente
masculina:
Foi o “povão”
que sustentou minha
candidatura na prévia do
Partido e depois a sustentou,
porque os dirigentes, os “capa pretas” não assumiram a minha candidatura, não quiseram assumir, não tinha a menor condição. Mas aí o Partido se empoderou, a militância de base conquistou a candidatura a prefeito
e a levou independente de setores
do Partido.
A memória desse processo é traduzida por ela como fruto de uma esquerda comprometida com a coletividade, com a justiça social, com os movimentos de base. Em
1992, durante seu governo
municipal, uma vala
clandestina com milhares de
ossadas de “indigentes” e
de “desaparecidos” políticos foi descoberta
no cemitério de Perus, bairro periférico da cidade de
São Paulo. O impacto provocado pelas imagens das ossadas televisionadas e o empenho de Luiza Erundina em atender a demandas de muitas
famílias pela identidade
dos corpos, pelo reconhecimento
de responsabilidade e pela reparação
do Estado associaram sua atuação a mais uma bandeira pelos direitos humanos e pelo direito à verdade, tendo apoio de diferentes grupos
políticos de esquerda[8]. Questionada sobre seu compromisso com a chamada esquerda, ela a definiu a partir de seu envolvimento com a Igreja progressista, com a luta pela terra e por moradia, com o movimento de mulheres e pelos direitos humanos e, só mais tarde, dentro dos quadros de
um partido político de caráter
ideologicamente socialista:
Na política, o próprio termo vem de pólis, a cidade, o cidadão, cidadania dá esse componente coletivo... Da política,
o filósofo Ananias diz muito bem: “a política é a ação de sujeitos coletivos". (...) E, portanto,
valores, princípios e comportamentos
de esquerda, porque ser de esquerda
não é esperar que um dia se faça a revolução
e se implante o socialismo no mundo. Não é isso, não! São os valores
socialistas que você tem
que viver desde já. Senão, você é mentiroso e mentirosa. Se você não vive a solidariedade, não vive o socialismo.
Sua
indignação pessoal,
mencionada como um elemento de sua
vida desde criança, atravessa
suas lembranças sobre sua formação como uma sujeita política que também faz referências às diversas mulheres que conheceu ou que estão nos movimentos combatendo as injustiças. É uma voz polifônica, que traz a diversidade de muitas lutas não
registradas pela história ainda
predominantemente cisheteronormativa, burguesa e masculina; uma voz e uma memória que produz não apenas a sua presença, mas
a presença de uma coletividade de mulheridades, tão inconformadas como ela própria em sua experiência:
Eu me inspirei
na mulher do campo, da
periferia. Aquela mulher
que se sustenta das pernas, mas que ainda mais se sustenta sem marido, sem pai de família. Uma grande heroína! Isso é uma situação
ainda muito presente hoje. A violência contra a mulher é fruto de uma cultura
machista, patriarcal de opressão, de exclusão. De opressão, o tal ciúme, é uma forma de posse e a posse machista,
patriarcal dominadora do macho sobre a fêmea, porque
a fêmea é considerada mais fraca do que o macho, do ponto de vista físico etc. Tudo isso é uma
cultura, né? É uma cultura
sustentada por uma tradição
religiosa e outras influências
que realmente alienam as pessoas,
não as emancipam.
Esta cultura à qual a deputada se refere é a de um país em que as relações desiguais de gênero são reforçadas politicamente por práticas e
discursos misóginos, materializados nos altos índices de violência
e feminicídio contra mulheres,
ou politicamente em campanhas difamatórias como a que
resultou no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff,
ex-guerrilheira e militante do PT, em 2016, ou no assassinato da vereadora negra, feminista e lésbica Marielle
Franco, do mesmo partido de Luiza Erundina, o PSOL. Com a entrevistada não foi diferente: durante toda a sua
trajetória no espaço
político ela sofreu e ainda sofre com
o fato de ser uma mulher
que foge aos estereótipos do “feminino hegemônico”: não se casou, não teve filhos, não se submeteu à opressão econômica e de gênero; é
nordestina e idosa. Como ela
mesma afirma, a política brasileira ainda está baseada no imaginário do “chefe da família”, que se
perpetua no poder público através das gerações: “Você vê, a maioria dos deputados lá na câmara é jovem,
mas as novas gerações que
se elegem recentemente ainda têm o mesmo nome dos coronéis, sempre”.
A política institucional
que se dá no espaço do
Estado brasileiro ainda é exercida
a partir dessa cultura patriarcal, branca e cisheteronormativa. Aos 86 anos,
Luiza Erundina é símbolo de resistência
e marca presença em meio à reabilitação de uma extrema-direita violenta e autoritária
que tenta desqualificá-la, nomeando-a
como “comunista”, “feminista” e “mulher-macho”, o que
não se limita à sua pessoa, mas aos grupos de mulheres com os quais divide sua luta:
Não sou
um modelo individual. As pessoas
dizem: “Mas você é
diferenciada”. Eu não sou
diferenciada coisa nenhuma!
Eu tive oportunidades de atuar
no mundo, de agir no mundo, de enfrentar o preconceito, a discriminação. Mas nunca me senti vítima
disso... sabe? Porque, por exemplo, só faltava
eu ser negra pra completar,
né?… O que eu sofri de preconceito!...
Recebia carta com fezes dentro e os policiais que me davam segurança já sabiam
que tipo de carta era. Eles já evitavam
que a carta chegasse em mim
e é assim: “nordestina suja, volta pra tua terra!”...
(...) Portanto,
minha luta não é a luta de uma fulana; não é a luta individual. É de todas as mulheres que insistem, resistem, disputam e conquistam poder! Tanto é que, como esse
poder é construído coletivamente,
você nunca se apropria dele
como sendo seu.
As lutas
das mulheres nunca passaram
alheias à sua história e às suas
memórias, auxiliando na construção de sua autoimagem e da compreensão
relativa às relações de gênero e das injustiças que abarcaram a sua própria vida desde a infância. Nessas referências ela se reconhece e se apresenta como uma pessoa forjada na luta social, mas também por sua percepção singular como
menina nordestina, na sua própria experiência de dificuldades existenciais, que a fez se construir como autônoma,
militante e representante de coletividades;
uma “educadora política”, como a nomeou
Paulo Freire.
Então, eu
vim em meio a esse turbilhão de vivências que desembocou em um caminhar que nunca foi individual, sempre com muita gente. Sem elas, eu
não chegaria à prefeita, vereadora, deputada. Eu
tinha mérito pessoal e
contribuí com isso, mas se eu não
estivesse em um partido que
era aquele que tinha uma proposta de transformação da sociedade, que empoderava seus militantes, que formava seus militantes, eu também não
teria sido eleita prefeita.
Sobre ser sempre
lembrada como a prefeita Luiza Erundina,
a primeira mulher e primeira nordestina a ser eleita
em uma metrópole para o qual se dirigem milhares de nordestinos e ter
realizado um governo com práticas sociais
voltadas à base popular –e o método Paulo Freire é exemplo disso nas
escolas públicas durante sua
gestão entre 1989 e 1992– ela
afirma que essa “marca” não
corresponde ao que ela é, e
que esse poder já não lhe cabe mais;
ou melhor, nunca lhe pertenceu:
Quando você
deturpa o poder, passa a ser uma
propriedade sua. E não é! O povo que te conferiu esse poder! Na hora em que
você termina o mandato que o povo
te deu, acabou esse poder; não é teu mais. Nunca
foi! (...) O poder do povo
não é de quem exerce o poder em nome do povo. Então, isso
nos forma e nos tira esses vícios de alguém que, como eu, uma vez prefeita
acha que é sempre prefeita e a sociedade alimenta isso. Todas as pessoas
me chamam de “prefeita, prefeita, prefeita”. Eu não sou mais
prefeita, não tem problema nenhum, chame como achar
melhor, entendeu? Mas que a
gente interiormente não pode se apropriar
de algo que não é mais teu, que nunca foi teu. O poder é
do povo! É isso que
faz a gente acertar mais do que errar.
Luiza Erundina
se percebe como uma sujeita
histórica que não teve uma formação individualizada, mas que
já tinha certo protagonismo em sua família, numa pequena
comunidade do nordeste: como a mais
velha das mulheres, como a
única que teve possibilidade de estudar
e de liderar processos reivindicatórios
em sua comunidade. Em seu relato mesclam-se a percepção da oportunidade de ruptura que a fez
reagir de uma maneira precoce, como ela mesma diz, e o aprendizado com os movimentos sociais, fazendo com que sua caminhada nunca fosse isolada: “Sobretudo como mulher, eu tive um
protagonismo na minha história de vida, que no grupo escolar, eu
não era a diferenciada, a menina especial. Não era nada disto! Eu era filha
do povo pobre que reagiu”.
Este caminhar, nunca solitário, mas que carrega a força de uma nordestina com todos os seus símbolos de resiliência, é o
que explica, para ela, ser hoje
ainda uma referência no cenário político do
Brasil e da América Latina. Nas memórias subjetivas as marcas de um
processo histórico se revelam
por experiências (Abreu Souza, 2011) que nascem da singularidade e se incorporam nos movimentos coletivos, evidenciando a presença
de Luiza Erundina nos espaços
de poder, afirmando assim a importância
de atitudes de(s)colonizadoras para o fortalecimento das mulheres nas esferas de poder que envolvem
a humanidade e sua diversidade.
Considerações finais
Compreender
o que marca e identifica a trajetória de mulheres que tatuam o tempo, o movimento e as conquistas em contextos diversos e exigentes, nos faz mergulhar em referências que expõem lutas públicas e que nos inserem
em investigações que possibilitem
o uso de histórias orais de
vida, considerando a importância das memórias nas construções
de novas realidades a partir de identidades individuais
e coletivas. Se pensarmos na história do Brasil, podemos
afirmar que mulheridades, e em especial as
nordestinas como Luiza Erundina, sofreram
um processo de tentativa de
convencimento de sua inferioridade e de certo destino
de submissão às condições econômicas, sociais e de gênero.
Uma
mulher que se narra como protagonista de sua história e se sente parte de uma resistência coletiva em suas mais diferentes dimensões (religiosa, agrária,
educacional, política, de gênero, entre outras), será sempre uma ameaça à manutenção
do sistema desigual que classifica, hierarquiza e discrimina. Também
será sempre referência de outras que nela se reconhecem. Mesmo não sendo negra, Erundina traz as marcas do preconceito,
dos estereótipos criados por uma
elite branca e machista que tenta apagar sua história nordestina, já escrita e compartilhada nas experiências de grupos que a
cada dia ocupam mais espaço na
disputa política para subvertê-la. Assim como ela o fez.
Os relatos orais
de Luiza Erundina nos apontam
para uma sujeita ativa que, ao rememorar,
descortina ações individuais
que impactam em desdobramentos
coletivos e são impactados
por eles. Registrar suas memórias
não se converte em revelar
verdades, mas de reconhecer,
na sua construção
autoral, referências a outras
histórias e vozes; de homens, mas em especial de sujeitas diversas que fazem de sua vida uma forma de rupturas de
vínculos de opressão substituídos
por alianças de solidariedade.
A construção da experiência
numa perspectiva crítica nos remete a reconhecer a singularidade dos processos, pois pressupõe sujeitos únicos e
inacabados numa trajetória
permanente de ações coletivas.
Dentro da abordagem de uma
pesquisa qualitativa que se estabelece
a partir da história oral de vida, nos cabe escutar as vozes das mulheridades, como Luiza Erundina,
que atuam em representações
de espaços de poder em que são
consideradas minorias, mesmo que sejam
a maioria da população, e
que, portanto, brigam para não serem invisibilizadas.
Como afirma Vânia
Vasconcellos (2018), um dos
desafios de escrever sobre sertanejas/nordestinas está em encontrar uma linha de equilíbrio
entre compreendê-las e defini-las
para além de “vítimas do
patriarcado” ou das condições
adversas da seca e da fome,
e colocá-las num pedestal como mais revolucionárias e rebeldes
que quaisquer outras,
entendidas por certa “fortaleza natural”. Ao nos abrirmos para a escuta atenta à narrativa de Luiza Erundina
saímos do lugar comum de tendermos a “um ou outro” destino para percebermos em sua trajetória a fluidez e o movimento
da construção de pessoas
que não apenas sobrevivem,
mas existem em meio ao processo histórico de lutas coletivas que, se revelam fragilidades e injustiças
sociais e de gênero, também nos falam sobre possibilidades de rompimentos e
de reescrita de uma história
em que mulheres possam se reconhecer como protagonistas e reconstruir caminhos não solitários,
como fez questão de
enfatizar Luiza Erundina ao
compartilhar conosco as suas memórias.
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FECHA DE ACEPTACIÓN: 04/11/2021
[1]A entrevista com Luiza Erundina aconteceu no final de 2019, em seu escritório político na cidade de São Paulo. O diálogo
foi gravado, transcrito e
autorizado por ela. Sua
entrevista faz parte de um projeto
desenvolvido pelas autoras, que atuam
no Grupo de Pesquisa: Formatio, da Universidade Federal de Alfenas
(UNIFAL-MG), e que tem como finalidade
trabalhar, por meio da história oral, com trajetórias pessoais de mulheres que promoveram impactos
de resistência e existência
em diferentes dimensões da sociedade brasileira, como na educação, nas artes e na política, tornando-se referências
de lutas coletivas.
[2] Entendemos que as palavras
“mulher” e “feminina” carregam conceitos plurais que perpassam muitas interseccionalidades de raça, sexualidade, regionalismos,
transgeneridades, entre outras.
No entanto, o conceito de feminilidade hegemônica é
definido culturalmente de maneira arbitrária
dentro de uma sociedade
patriarcal que normativa e naturaliza uma única forma
de “ser/parecer mulher” (Áran,
2006). No caso de Erundina, ela
é uma mulher cisgênera e branca, mas suas origens de classe, como filha de retirantes nordestinos e pobres, e sua
opção por não se casar e não ter filhos a colocam, em toda sua trajetória, sob estigmas que a dissociam dos
modelos de feminilidade hegemônica.
[3] Para José Carlos Sebe Bom
Meihy (2005), o tom vital
de uma entrevista é o sentido específico que cada indivíduo dá à sua própria vida, o núcleo da sua narrativa.
[4] Nascido em Recife,
Paulo Freire foi um
educador que propunha e praticava
uma alfabetização que aliasse a educação a uma leitura da realidade enfrentada pelas classes
populares. Segundo Porcaro (2007), ele representou
um novo paradigma
pedagógico, que muito incomodou
a ditadura. Perseguido politicamente,
Paulo Freire se exilou no Chile por 14 anos. Quando retornou,
nos anos 1980, atuou como secretário
da educação no governo de Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo.
[5] A estreita relação entre educação e religião na construção
de seu feminismo na prática é uma marca da narrativa
de Luiza Erundina, aparecendo em outros
trabalhos, como o de Roger Camacho Barrero Jr.
(2021), que também escreveu
sobre sua trajetória junto
a de outras mulheres como
Irma Passoni e Lélia Abramo, também militantes do
Partido dos Trabalhadores.
[6] O AI-5 foi um dos 17 Atos Institucionais decretados pelo regime
militar. Ele foi assinado pelo presidente General Artur
da Costa e Silva, em 13 de dezembro
de 1968. Sua imposição resultou em medidas repressivas tais como o fechamento do Congresso Nacional
e das assembleias legislativas dos estados, a cassação de mandatos legislativos, a censura prévia, a proibição de reuniões políticas e o fim do
Habeas Corpus, entre outras.
[7] Sobre a história da luta de mulheres e do feminismo
no Brasil, entre outros, o trabalho
de Céli Regina J. Pinto (2003) é
uma referência.
[8] Sobre a descoberta dos
corpos e o trabalho de identificação no contexto de justiça
de transição ver o livro Vala Clandestina de Perus
(2012).