- Na entrevista que realizamos com a autora Maria Adelaide Amaral, ela disse que quando a Manuela sai da
Estância, vai para Guerra e ainda faz sexo com o Giuseppe Garibaldi, ou seja, atos transgressores que não
estavam presentes em sua obra literária e que foi um recurso utilizado pela teledramaturgia você se revelou
chocada, sobretudo, porque tal situação também não ocorreu na realidade. Na época, isso te incomodou por
qual razão? E, outro ponto, que a minissérie e sua obra literária convergem é a emancipação feminina, isto é,
com personagens destemidas. De alguma forma intentos da pós-modernidade ou pautas do movimento
feminista perpassaram por você no momento de criação da narrativa?
- Vamos por partes: a questão da Manuela. Na época, a Maria Adelaide – super querida – me contava tudo
que eles iam fazer na minissérie. Me lembro até dela me escrever: “agora você vai ficar apavorada com o que
vai acontecer”. E claro que é um pouco tocante. Agora que eu trabalho com roteiro eu entendo que eles
precisaram fazer isso. Ela deve ter te dito que embora fiquei espantada eu compreendi e nos damos todos
bem e somos amigos. É claro que eu entendo a necessidade, na época toda... O que acontece é que a TV
trabalha com uma estrutura um pouco mais solta do que a literatura [onde] as pessoas podem voltar às
páginas e ler e pensar sobre o assunto. E a lógica interna da personagem se destrói um pouquinho, porque a
família da Manuela não permite que ela fique com o Garibaldi. E isso é um fato histórico! Porque ela era de
uma família muito rica. E no século XIX a tarefa de uma mulher era, exclusivamente, se casar e gerar filhos,
descendentes. E casar com quem a família escolhesse que seria monetariamente ou politicamente
importante e tal, era o caso sempre de uma moça rica como ela. Quando o noivado dela com Garibaldi é
vetado [por sua mãe], isso é excluído da vida dela. Caso ela seguisse atrás dele não teria mais nenhum
motivo para eles não ficarem juntos, entende? Então tem um rompimento de lógica dentro da minha
narrativa, da narrativa que eu estava construindo, porque esse fato não aconteceu. É real! A Manuela morre
com mais de 70 anos, foi super longeva para o século XIX e ela não casa com ninguém. Aí vem a transgressão
dessa personagem da vida real. Ela tinha a obrigação de casar e gerar descendência, [mas] não deixam ela
ficar com o homem que ela ama e ela acaba não se casando com ninguém. Tem crônicas da época, do Jornal
de Pelotas – onde ela viveu e morreu – contando que ela já idosa se vestia de branco e andava pelas ruas
carregando um pacote de cartas que ela dizia que eram cartas do Garibaldi. Ela ficou conhecida como a
noiva do Garibaldi. E as crianças jogavam pedras nela [que ficou conhecida] como a ‘louca do bairro’. Eu
acho que ela já estava com algum processo de demência. Isso é um fato, mas a opção de transformar a
Manuela nessa mulher que vai pra guerra é totalmente compreensível pra mim, inclusive, foi um
aprendizado narrativo pra mim. Sobre a questão do feminismo eu acho que sim. Eu sou gaúcha, aqui no Rio
Grande do Sul, você estuda a Revolução Farroupilha na escola e toda vez que você vai estudar uma guerra –
isso é um fato – geralmente, a perspectiva é masculina. A História até recentemente foi escrita por homens
para homens. As mulheres são pegadas, tanto que para escrever esse romance eu tive que praticamente
revirar o Instituto Histórico e Geográfico, as bibliotecas para encontrar pegadas que eram muito frágeis
dessas mulheres. E depois que eu fui escrever a própria história da Anita Garibaldi que é um vulto histórico
importante associado a essa determinada mulher que quebrou paradigmas gigantes que até hoje são
impressionantes. Porque uma mulher fazer o que ela fez é pasmificante e não ter quase nada sobre ela
tendo só a partir do momento que ela está vinculada a Garibaldi. Então a História não olha para as mulheres
e quando eu decidi contar um dos maiores fatos históricos do sul do país, uma guerra tão amplamente
estudada e tal pelo ponto de vista feminino eu acho que aí eu já estou querendo, justamente, trazer uma
bandeira feminista e aí eu acho que essa é de fato a grande graça do romance que faz com que ele
permaneça sendo lido até hoje. O livro é super adotado em escolas, eu vendi de novo os direitos para uma
nova série, a gente fez uma versão do romance em HQ, tá lindo. Então eu acho que sim, eu quis dar a essas
mulheres um protagonismo muito importante. O Rio Grande do Sul viveu muitas batalhas, duzentos anos de
batalhas, porque fazia fronteira do Império com toda a Cisplatina, o que acontece é que esses homens saiam
para guerra constantemente. Cada geração tinha uma guerra e as mulheres ficavam, elas tinham que ficar e
manter as coisas em ordem e esperar seus homens (maridos, pais, filhos, sobrinhos, enfim...) voltarem –
quando voltavam – para seguirem a vida. Na Revolução Farroupilha isso foi mais intenso ainda, porque foi
uma Revolução [onde] esses estancieiros tinham que financiar uma parte dessa guerra. E de onde vinha
esse dinheiro? Vinha das próprias Estâncias que eles tinham e que eles não estavam cuidando, [pois] quem
estavam cuidando eram as mulheres que se mostraram grandes empreendedoras nesse período. Então, sim,
tem uma bandeira feminista no livro.