Número 12
Año 2024
Prolegômenos para o filme-ensaio Le gai savoir de Godard
Prolegomena to the essay film Godard's Le gai savoir
Patrick S. Cavalcante
Universidade Estadual de Campinas
Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação
Instituto de Artes
Campinas, Brasil
patrickcavalcante7@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-2307-016X
https://doi.org/10.55442/tomauno.n12.2024.47084
https://id.caicyt.gov.ar/ark:/s22504524/38k6f46vx
Resumo
Este trabalho visa apresentar uma breve análise do filme Le gai savoir (1967-1969) de Jean-Luc Godard, sob o recorte do domínio do filme-ensaio. Na obra em questão, ao tentar definir o conceito de imagem, tanto visual quanto sonora, Godard busca compreender o processo de “fabricação” das imagens livres, sem “palavras de ordem”, a propósito de uma epistemologia transversal. Ao abordar essa busca, iremos fazer uma correlação entre a montagem que é operada na forma do atlas –por meio das análises que Georges Didi-Huberman (2018) faz do atlas Mnemosyne de Aby Warburg– com a forma de montagem operada por Godard no filme em questão. Finalizaremos com uma abordagem sobre o pensamento ensaístico de Godard a partir de uma autocrítica que ele apresenta acerca do seu próprio fazer fílmico.
Palavras-chave
filme-ensaio, cinema e filosofia, Atlas Mnemosyne, Le gai savoir, Jean-Luc Godard
Abstract
This paper aims to present a brief analysis of the film Le gai savoir (1967-1969) by Jean-Luc Godard, under the focus of the domain of the essay film. In the work in question, in order to define the concept of image, both visual and sound, Godard seeks to understand the process of “fabrication” of free images, without “watchwords”, regarding a transversal epistemology. In approaching this search, we will make a correlation between the montage that is operated in the form of the atlas –through the analyses that Georges Didi-Huberman makes about Aby Warburg's atlas Mnemosyne– in the form of montage by Godard in the film in question. We will finish with an approach about Godard's essayistic thought based on a self-criticism that he presents about his own filmmaking.
Keywords
essay film, Cinema and Philosophy, Atlas Mnemosyne, Le gai savoir, Jean-Luc Godard
Recibido: 21/06/2024 - Aceptado con modificaciones: 11/10/2024
TOMA UNO, Nº 12, 2024 - https://revistas.unc.edu.ar/index.php/toma1/index
ISSN 2313-9692 (impreso) | e-ISSN 2250-4524 (electrónico)
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Introdução[1]
Jean-Luc Godard revoluciona a sua própria forma de narrar. Desde os filmes que antecederam A gaia ciência [Le gai savoir] (1967-1969), Godard trabalha com elementos da forma ensaística no seu fazer cinematográfico. Em Uma mulher casada (1964), Tempos de guerra (1963), Viver a vida (1962), O pequeno soldado (1960) já se faziam presentes, numa cena ou outra, expressões que se apresentavam como lampejos do pensamento ensaístico do realizador, até se chegar na junção desses elementos e na criação de novos: primeiramente, no filme Duas ou três coisas que eu sei dela, de 1967 (primeiro filme de Godard indexado como propriamente ensaístico), para no mesmo ano começar os primeiros takes do trabalho que resultou, de forma ainda mais experimental que o anterior, ou, se pudermos dizer, mais livre, no filme A gaia ciência. Neste, a meu ver, é onde ele revoluciona seu modo de fazer fílmico de forma mais marcada, se afastando ainda mais de uma narração fílmica que impõe ao cinema a inclusão direta, sem problematização, de elementos advindos do teatro e da literatura –quando da conquista da narratividade no cinema–, o que acabaria por reduzir os próprios códigos cinematográficos. Estes dois últimos filmes estão no lugar das primeiras inscrições ensaísticas do pensamento de Godard no cinema, dentro de um formato de longa-metragem.
Filmado entre dezembro de 1967 e janeiro de 1968 –antes do período marcado pelas manifestações estudantis de Maio de 68 na França–, montado durante e após esse período e lançado em 1969, a realização do filme A gaia ciência foi um tanto conturbada. Em 24 de outubro de 1968 o filme foi rechaçado pelo organismo estatal televisivo francês e a censura do país proibiu de imediato a sua distribuição comercial, só vindo a ser lançado em âmbito nacional em janeiro de 1969 no Cinéma National Populaire de París, para depois ter sua estreia em Londres, Nova York, Montreal e no Festival de Berlim. Ainda no ano de 1968, Godard havia se encontrado com Jean-Pierre Gorin (membro da Union des Jeunesses Communistes Marxistes-Léninistes), encontro através do qual foram dados os primeiros passos para a criação do coletivo de cinema Grupo Dziga-Vertov que, junto a outros cineastas, buscavam firmar contratos de produção de baixo custo sem ingerências externas a fim de intervir ideologicamente no aparelho ideológico de Estado Cultural, fazendo frente à burguesia e ao revisionismo, como também à prática cinematográfica dominante (Font, 1972).
Ao ser perguntado em entrevista ao jornal francês Le Monde sobre os filmes que havia realizado no período que antecedeu a Maio de 68, incluído aí A gaia ciência, Godard responde que se tratavam de filmes importantes para ele repensar a realidade de suas relações com a sua própria história, porquanto, para romper com uma certa maneira de fazer cinema, era necessário romper com o conceito clássico de ruptura (Baby, 1972). A ideia, dizia ele, não era a de fazer um cinema político, mas de fazer politicamente um cinema político. Até o momento, esse foi e seguia sendo o princípio de um novo estilo do seu cinema. Um estilo bastante evidente no filme A gaia ciência, cuja relevância se assenta na experimentação fílmica protoensaística[2] do seu pensamento sobre o conceito de imagens e sons livres.
O contexto que antecede o período de realização do filme era o contexto da Nouvelle Vague francesa, um movimento cujos filmes notadamente inaugurais foram Os incompreendidos (1959) de François Truffaut –que tem sua estreia em Cannes ao lado de um filme mais convencional, o Orfeu Negro (1959) de Marcel Camus– e Acossado (1960) de Godard, os primeiros longas-metragens de suas carreiras, embora o termo já houvesse tido penetração midiática, por meio da imprensa não especializada, com os filmes Nas garras do vício (11 de fevereiro de 1959) e Os primos (11 de março de 1959) de Claude Chabrol; sem falar no filme símbolo dessa nova geração que foi o primeiro longa de Roger Vadim, E Deus criou a mulher (28 de novembro de 1956). Vale ressaltar, como observa Michel Marie (2011), que a Nouvelle Vague, antes de sua identificação enquanto um movimento de cineastas, graças à imprensa e ao Festival de Cannes –embora Godard discordasse de uma classificação homogênea acerca da estética do grupo[3] de cineastas do período–, essa expressão remetia, em sua origem, aos novos métodos de pesquisa sociológicos que vinham se popularizando até então e ao estudo dos novos fenômenos geracionais da juventude da época; no caso do cinema, além da nova onda de cineastas trazerem temas como a liberdade e a emancipação da juventude, apresentou rupturas significativas para com as formas convencionais de se fazer cinema.
Patricia e Emile: descendentes da revolução
Podemos considerar A gaia ciência como um dos primeiros feitos ensaísticos de Godard, ao lado do filme Duas ou três coisas que eu sei dela (1967). O filme apresenta duas personagens que deverão investigar imagens e sons, na tentativa de elaboração de um método seguido de uma autocrítica que ajude a compreendê-los e, quem sabe, a “fabricá-los” ou, no mínimo, estabelecer pontos de referência. O ponto de partida, aludindo ao ensaísta Jean Starobinski (2011), é a invocação de uma “liberdade que escolhe seus objetos, que inventa sua linguagem e seus métodos” (pp. 24-25).
As personagens do filme são Patricia e Emile. Elas deverão, num período de três anos, estudar imagens visuais e sonoras produzidas na televisão, no cinema e no rádio, além do estudo de imagens videográficas, eletrônicas e impressas em meio físico. No primeiro ano, elas farão a recepção de imagens e gravarão peças sonoras, o que ajudará a criar experiências não regulares, ações, hipóteses. No segundo ano, farão a crítica do material estudado: decompondo, reduzindo, substituindo e recompondo. Já no terceiro ano, criarão amostras de sons e imagens, para então criar dois ou três modelos de interpretação antecipados dessas amostras.
Patricia Lumumba, uma referência a Patrice Lumumba –líder do Movimento Nacional Congolês que liderou diversas manifestações políticas em prol da independência do Congo Belga (atual República Democrática do Congo), efetivada em junho de 1960–, é descrita por Emile como a que “veio debaixo do mar”, ou seja, “representante do terceiro mundo, das novas fábricas Citroen (...) do Atlântico Norte” (Godard, 1967-1969, 1 m), em uma das quais foi despedida por dar gravadores de bolsos com circuitos impressos à classe operária para gravar os abusos do patronato francês.
Emile Rousseau, uma referência à Jean-Jacques Rousseau –cujas obras tiveram uma importante influência no período da Revolução Francesa–, é descrito por Patricia como um estudante que, ao tentar se apresentar, alegremente, à aula inaugural da Faculdade de Ciências da Cidade luz, é impedido de entrar na aula por conta de as salas estarem lotadas. Ao tentar entrar à força, é atingido no coração pelo grupo de paraquedistas enviado pelo Ministério da Justiça, a pedido da Reitoria da universidade. Por sorte, seu prejuízo foi menor por levar debaixo do suéter a última publicação dos Cahiers du Cinéma.
Essas descrições das personagens já prenunciam o tom crítico de resistência política presente no filme, cujo movimento libertário e de vontade de saber apresentados nele andam relacionados com um terceiro elemento que poderia se constituir como uma via de “ruptura” contra a repressão causada na juventude do final nos anos 1960, a saber, o cinema, representado, nesta cena, pela revista Cahiers du Cinéma que protegeu o coração de Emile.
No primeiro encontro, as personagens se chocam na calçada: ambos estão a caminhar por uma espécie de rua imaginária –ambientada sob um fundo infinito na cor preta, típico dos sets de gravação em estúdio, como acontece na maior parte do filme– e, acidentalmente, Patricia se choca com Emile que está sentado numa espécie de calçada, também imaginária (imagem 1). Após esse choque, ao invés das personagens falarem sobre si, elas descrevem-se mutuamente, numa ironia de Godard em resposta ao postulado da descrição enquanto uma tipologia textual capaz de corresponder à realidade da coisa descrita. Essa discussão já havia sido trabalhada no filme Duas ou três coisas que eu sei dela, como podemos observar no trecho da seguinte narração: “A linguagem por ela mesma não pode definir, com precisão, a imagem” (Godard, 1967, 42 m) –uma severa suspeita de Godard com relação à linguagem que, segundo ele, afoga a realidade em um “mar de significados”–.
Imagem 1: Godard, J. (1967-1969). Le gai savoir [longa-metragem]. França, Alemanha Ocidental: ORTF, Bavaria Atelier Gessellschaft.
O grau zero das imagens
O trabalho a ser operado com as imagens pelas personagens de A gaia ciência, deverá ser, afirmam elas, um trabalho prático e teórico. Dessa forma, a prática não será cega, já que será esclarecida por uma teoria revolucionária, ao passo que a teoria não será sem objeto, já que será ligada a uma prática revolucionária –o revolucionária aqui é muito devido ao contexto de realização do filme marcado pelas manifestações de Maio de 68, que, apesar de não ter sido considerada oficialmente como uma revolução cultural, foi um movimento importante contra a repressão da liberdade e o sistema educacional da França, dialogando, inevitavelmente, e com todas as ressalvas, com a Revolução Francesa, marcada pelo evento central da Tomada da Bastilha em 1789, cujos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade tiveram em Jean-Jacques Rousseau sua principal inspiração–. Não é à toa que Godard coloca o nome do filósofo Rousseau como roteirista nos créditos do filme, a despeito de toda e qualquer análise não dialética que possa ser feita acerca desta referência.
Após uma revolução, chega-se a um grau zero não idêntico à sua origem. É ao que aludem as personagens do filme, num diálogo em que Patricia dá voltas ao redor de Emile, montada numa bicicleta (imagem 2). Aqui podemos observar claramente uma analogia a esse movimento de retorno diferencial no diálogo entre as personagens:
Filme amador. Filme de estudante. Uma das questões que podemos... nos perguntar em termos de antro... pologia, a respeito do... Universo, é precisamente... se o Universo está ou não está... girando. Na prática... isso significa que, no... caso de uma resposta negativa... se tomarmos um caminho circular... no Universo, retornaremos... ao nosso ponto de partida... não idênticos a nós mesmos..., mas simétricos ao que... éramos antes (Godard, 1967-1969, 59 m).
Imagem 2: Godard, J. (1967-1969). Le gai savoir [longa-metragem]. França, Alemanha Ocidental: ORTF, Bavaria Atelier Gessellschaft.
No filme, esse grau zero aparece quando Emile diz “A primeira imagem” (Godard, 1967-1969, 11 m) e surge na tela a imagem considerada como a primeira fotografia feita em 1826 pelo francês Joseph Nicéphore Niépce (imagem 3); também a palavra zero, terminada pelo número 0, aparecem inscritos em uma fotografia da imagem de Godard (imagem 4), o único momento em que ele aparece visualmente, sendo esta, além das partes em que a sua voz irá narrar diversas passagens no filme, uma das características que identificam A gaia ciência como um filme-ensaio –a presença do realizador em corpo e voz–. O seu nome também irá figurar numa das cenas em que ele faz o uso da claquete (imagem 4), trazendo a sua presença também através da palavra da assinatura de seu nome, na qual ele se identifica como realizador.
Imagem 3: Godard, J. (1967-1969). Le gai savoir [longa-metragem]. França, Alemanha Ocidental: ORTF, Bavaria Atelier Gessellschaft.
Imagem 4: Godard, J. (1967-1969). Le gai savoir [longa-metragem]. França, Alemanha Ocidental: ORTF, Bavaria Atelier Gessellschaft.
Por uma epistemologia transversal
Há uma cena no filme em que a personagem Patricia aparece com um sobretudo roxeado de mangas compridas, cujos volumes formam uma espécie de lepidoptera,[4] na qual os bordados poderiam nos remeter às escamas das asas de uma borboleta (imagem 5). Ao fundo estão dispostos personagens de histórias em quadrinhos, o que cria uma atmosfera de fantasia, no sentido comum do termo, em consonância com a leitura que ela faz de um livro, enquanto se movimenta, em uma língua qualquer supostamente inventada no momento da gravação. Esta sequência é precedida pela cena em que Emile menciona que ambos criarão dois ou três modelos de som e imagem, intercalada pelo intertítulo “FILME HISTÓRICO”.
Imagem 5: Godard, J. (1967-1969). Le gai savoir [longa-metragem]. França, Alemanha Ocidental: ORTF, Bavaria Atelier Gessellschaft.
Esse primeiro modelo, na proposição de um “filme histórico”, parece ser a escolha que Godard elege para apresentar a ideia de uma imagem totalmente alheia a uma linguagem articulada e acabada –a exemplo do discurso historicista, que visa preencher os espaços vazios da História, levado a cabo pelo “progresso” do qual tanto combateu Walter Benjamin–, preferindo, a contrapelo, ainda que em forma de esboço, um balbuciar “como um estrangeiro em sua própria língua” (p. 56), como afirmou Gilles Deleuze (1992) em suas Conversações. Isso fica evidente quando, em meio a este balbuciar da personagem, ora em tom debochado, ora como palavra de ordem, são pronunciadas palavras e expressões específicas, tanto por ela quanto por Emile, as quais surgem intencionalmente desconectadas umas das outras, são elas:
Linguagem; saber; o coração de uma mulher; certeza da inconstância; segundas intenções; mudar algumas vezes; quem diz não; sempre interpretando um papel; mentir; ser fraco e violento; princípio que é imposto pelo mundo; mentir algumas vezes; necessidade; tomar o prazer pela loucura! (Godard, 1967-1969, 1 h 25 m).
Podemos aqui, assim como quem assiste ao filme, fazer múltiplas conexões entre uma palavra e outra, conexões estas que poderiam servir não como uma simples tentativa de preenchimento das lacunas existentes entre elas, mas, a partir de determinadas formas de conexões, permitir uma abertura para novas possibilidades de pensamento que essas mesmas formas forçosamente fariam emergir, como afirma Emile ao dizer à Patricia: “... quando soubermos a forma de utilizar estes dois sons juntos, a conexão entre eles será forçosamente apropriada” (Godard, 1967-1969, 14 m). Para isso, como enunciado por Patricia na sequência anterior, “o que precisamos saber é o que os separa” (14 m). Nesse sentido, as palavras que destacamos anteriormente “aparecem” e extravasam tanto a imagem visual ambientada pela história em quadrinhos quanto a imagem sonora do balbuciar de Patricia, elas nos convocam a imaginar novas possibilidades de conexões a partir daquilo que as separa, a partir de suas fronteiras, isto é, daquilo que está na margem em direção a um saber transversal.
Esse tipo de saber ou conhecimento transversal –como sugere Georges Didi-Huberman (2018) em seu notável ensaio sobre o atlas de imagens Mnemosyne de Aby Warburg– se dá através de uma “potência intrínseca de montagem” entre laços indiretos e nada óbvios operados pela imaginação. A imaginação, diz o autor, assim como a palavra imagem, é uma palavra perigosa, nada tem a ver com uma “fantasia pessoal ou gratuita” e nem mesmo com a sensibilidade. O filósofo trabalha o conceito de imaginação do poeta Baudelaire (1857), quando cita suas Notes nouvelles sur Edgar Poe, em que o poeta compara a imaginação a “... uma faculdade quase divina que percebe tudo primeiro, fora dos métodos filosóficos” (Didi-Huberman, 2018, p. 20), conferindo um valor tal que, para Baudelaire, um sábio sem imaginação, se não se tornar um falso sábio, tornar-se-á um sábio incompleto.
Perigoso também, e até mesmo explosivo como uma mina –embora inesgotavelmente generoso–, assim o definirá Didi-Huberman, é a forma do atlas: “uma forma visual do saber, uma forma sábia do ver” (Didi-Huberman, 2018, p. 18). O autor observa que um atlas é feito de pranchas de imagens que consultamos deixando divagar nossa “vontade de saber”: após obtermos a informação precisa, nos deixamos deambular de forma errática sobre essas imagens, tal qual uma falena ao vagar na noite, “sem intenção precisa, através de sua floresta, seu labirinto, seu tesouro. Esperando uma próxima vez, tão inútil quanto fecunda” (Didi-Huberman, 2018, p. 18).
Essa experiência de deambulação que abriria espaço para novas relações inesgotáveis é comparada pelo filósofo a um jogo infantil, no qual ao perguntarmos para uma criança sobre o sentido de uma palavra no dicionário, inquietas como são as crianças, ao invés de buscarem o sentido denotativo (lectio) dessa palavra, numa busca pela mensagem, elas tenderiam a responder sobre o seu sentido conotativo (delectatio), imaginativo, através do uso da montagem; da mesma forma ocorre quando nos utilizamos de um atlas, até porque, remetendo a Benjamin e à sua articulação do conceito de legibilidade (Lesbarkeit), o autor ressalta que ler o mundo não deve ser um uso exclusivo dos livros, nem mesmo das imagens, é um ato que visa articular ou reatar as coisas desse mundo de acordo com as suas “correspondências” e “analogias” (Didi-Huberman, 2018, p. 21).
Podemos encontrar um exemplo dessa experiência na cena em que as personagens Patricia e Emile submetem uma criança a um jogo de palavras. A cada palavra dita por ela, a criança deve responder com uma outra que ela imagine estar associada de alguma maneira à palavra que acabara de ouvir. A criança, ao ouvir a palavra torture [tortura] responde com a palavra tortue [tartaruga], fazendo uma conexão não pela via do significado, mas pela similitude fônica que uma palavra mantém com a outra, ou seja, uma relação criativa pela via da imaginação, através de uma montagem/conexão entre as pronúncias das palavras. Uma outra conexão criativa que a criança faz é quando lhe pronunciam a palavra communiste [comunista] e ela responde magicien [mágico], momento no qual Godard se utiliza dessa conexão feita pela criança para fazer uma montagem (imagem 6) com a imagem da capa do livro Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo de Lênin (1920) e a leitura da introdução do Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels (1848), fazendo a conexão entre as palavras comunista-comunismo e mágico-fantasma: “Um fantasma assombra o mundo. O fantasma do comunismo. Todos os poderes do ocidente se uniram para caçar este fantasma...” (Godard, 1967-1969, 31 m).
Imagem 6: Godard, J. (1967-1969). Le gai savoir [longa-metragem]. França, Alemanha Ocidental: ORTF, Bavaria Atelier Gessellschaft.
O atlas, segundo o filósofo, subverte a forma padrão de toda ciência, a saber, a tradição platônica na preeminência da Ideia como conhecimento verdadeiro extraído do meio sensível (imagens). Há um duplo paradoxal entre o paradigma estético da forma visual e o paradigma epistêmico do saber, cujas formas canônicas em que engendraram esses paradigmas serão subvertidas pela forma do atlas, que “inquieta todos os quadros de inteligibilidade”: Contra toda pureza epistêmica, o atlas introduz no saber a dimensão sensível, o diverso, o caráter lacunar de cada imagem. Contra toda pureza estética, ele introduz o múltiplo, o diverso, o hibridismo de toda montagem (Didi-Huberman, 2018). É nessa condição de inclusão do sensível na forma do conhecer que Emile proporá a sua definição de imagem sob o termo mesotodimento, uma composição de “método com sentimento”, dirá Patricia, uma mistura impura –como impuro é o cinema desde a sua constituição, importando elementos conceituais de outras artes através de uma tradução intersemiótica, a exemplo da incorporação do conceito de poética em cuja esteira seguiu a noção de ensaio, como também as noções de “autor” e de “performance” (Teixeira, 2015). Ora, a forma ensaística é uma forma que expressa o próprio movimento do pensar na formação dos conceitos. O intelecto é desordenado e se vale dos afetos para guiá-lo na formação do pensamento, é o que nos afirma Julio Cabrera (2006) em sua teoria logopática de que o logos e o pathos atuam juntos na formação dos conceitos. Nesse sentido, o pensamento é trabalhado inicialmente dentro da descontinuidade, com a interrelação de elementos desconexos até que se forme pensamento propriamente dito através da montagem – seja de proposições discursivas ou de planos filmados –, e o ensaio desnuda esse movimento de formação que, no caso do cinema, é definido por Cabrera como conceitos-imagem.
A questão da teoria dos conceitos genuinamente cinematográficos já havia sido trabalhada por Deleuze em 1985, a partir da qual Cabrera o toma como referência para a sua teoria de logopatia, na qual os conceitos-imagem não seriam aqueles conceitos herdados de áreas como a Filosofia ou a Literatura, mas gerados exclusivamente pela imagem fílmica de forma autônoma. Nesse sentido, afirma Deleuze (2005) em A imagem-tempo:
... Os conceitos do cinema não são dados no cinema. E, no entanto, são conceitos do cinema, não teorias sobre o cinema. (...) O próprio cinema é uma prática das imagens e dos signos, cuja teoria a filosofia deve fazer como prática conceitual. Pois nenhuma determinação técnica, nem aplicada (psicanálise, linguística), nem reflexiva, basta para constituir os próprios conceitos do cinema (p. 332).
O ensaísmo autocrítico de Godard
Essa busca ensaística das personagens de A gaia ciência pelo conhecimento das imagens livres é uma busca que não encontra êxito no propósito maior de explicar o cinema, mas que procura conhecê-lo, como enuncia o próprio Godard em uma narração feita por ele nos minutos finais de seu filme:
Este filme não queria e não pôde explicar o cinema nem constituir o seu objeto. Mas, mais modestamente, oferecer um método eficaz para se chegar lá. Este filme não é o filme que precisa ser feito, mas se temos um filme a fazer precisamos enveredar, necessariamente, pelos velhos conhecidos caminhos do cinema (Godard, 1967-1969, 1 h 32 m).
Esta narração evidencia muito bem o caráter ensaístico do filme, uma vez que o realizador comenta o seu próprio processo de criação artística, reformulando a proposta inicial de se partir de um grau zero, de uma “novidade absoluta” –traço das primeiras vanguardas–, que agora é retirada de cena em prol da necessidade de se enveredar pelos “velhos conhecidos caminhos do cinema”, colocando assim o seu ponto de vista subjetivo na obra, acerca de si e do seu próprio fazer fílmico, tal como fará em Roteiro do filme Paixão (1982), cuja realização se deu depois do filme a que faz referência.
Ao incluir-se dentro de uma crítica ao seu próprio modo de fazer cinema, Godard incorpora a forma autocrítica do fazer ensaístico, visto que o filme-ensaio, conforme Timothy Corrigan (2015), leva quem produz o filme a falar de si e do seu próprio fazer fílmico, pois que o sujeito ensaístico não é apenas quem produz expressões, mas é também o produto de suas “expressões experienciais mutáveis”, isto é, no mesmo momento enquanto produz, enquanto se expressa, também se modifica, e, com isso, modifica a sua obra. Max Bense (1947) já havia tratado sobre essa questão no texto O ensaio e sua prosa (traduzido para o português por Samuel Titan Jr. para a Revista Serrote, em 2014), através do qual evidencia, a partir de Lichtenberg, que a relação da inclusão do sujeito ensaísta no seu próprio experimento não se trata apenas de uma experimentação de ideias, pois “... o ensaio autêntico vai além do ato estético ou ético; o procedimento intelectual desdobra-se no phatos existencial do autor” (par. 20).
Aqui vale lembrar da proposição cunhada por Francisco Elinaldo Teixeira (2022) de que “todo filme-ensaio é, imanentemente, experimental, mas que nem todo experimental é ensaístico” (p. 70), justamente porque, segundo o autor, o ato de pensar que constitui o filme-ensaio –também presente no experimental– se diferencia deste último ao envolver naquele, de forma direta, a subjetividade do sujeito ensaísta, a qual é inscrita no filme e transformada em matéria prima de primeira grandeza.
É muito recorrente nas obras de Godard, principalmente naquelas de viés mais ensaístico, encontrar os seus próprios filmes enquanto objetos de crítica, a exemplo da octologia História(s) do cinema (1988-1998) e do seu último longa-metragem Imagem e Palavra (2018). Em ambas as obras, reconhecemos o que Benjamin identificou como sendo o potencial radical do ensaio: “uma expressão feita inteiramente de citações” (como se citou em Corrigan, 2015, p. 34), mas que se faz através de uma ressignificação do material utilizado. O próprio Benjamin teve a sua tese de doutorado Origem do drama barroco alemão rejeitada, em 1920, por uma total incompreensão da academia daquele que se tornaria um dos principais textos ensaísticos do século XX. Partindo desse potencial do ensaio, Godard se utiliza em sua filmografia de fragmentos de filmes seus e de outrem, bem como de imagens de livros, pinturas, recortes de frases, boa parte das vezes, adulterados e imbricados de forma a levantar críticas à indústria do cinema, à televisão, às guerras, numa cascata de imagens e sons diversos que solapam na tela verdades cristalizadas e constituídas acerca da humanidade e do mundo das imagens, sejam elas pictóricas, cinematográficas, eletrônicas ou sonoras.
Uma hora de trabalho literário de Isidore Solaire é um exemplo fictício que Emile cita no filme de um livro feito inteiramente de citações. Interessante é o modo como ele foi elaborado: após o intertítulo “FILME ROMÂNTICO”, Emile apresenta a obra como um romance feito por um funcionário de uma livraria universitária, um pobre empacotador e entregador de livros. No momento em que ele recebe os livros da caixa, conta Emile, ele decora alguns trechos lidos em poucos segundos. Ao tempo de 30 anos, ele conseguiu se alfabetizar e passou a ler Faulkner e Chomsky. O livro citado trata-se de uma hora de trabalho dele, na qual ele dispôs de diversos trechos lidos nesses poucos segundos que antecedem a entrega da mercadoria. Essa situação, narrada por Emile em A gaia ciência, já havia sido encenada brevemente em Duas ou três coisas que eu sei dela, através de uma sequência em que uma personagem de um sebo recolhe livros, aleatoriamente, e lê pequenos trechos deles para uma outra personagem que está ao lado, supostamente, escrevendo essas citações.
Não obstante, essa imagem de uma obra feita inteiramente de citações é revelada não só nessa situação hipotética do livro de Solaire, mas na própria forma de montagem do filme A gaia ciência: Godard apresenta imagens que irrompem diante de suas personagens, mas que também explodem diante de nós, ao operar uma montagem fragmentária e fora de ordem, fazendo do filme o seu próprio “livro de citações”.
Considerações finais
Ao lado do potencial radical do ensaio, o da citação, é nessa renovada “busca que não encontra êxito” das personagens de A gaia ciência que o filme caminha em direção ao sentido primevo do ensaio experienciado por Michel de Montaigne, a saber, o sentido de “tentativa”, sentido este presente na cinematografia de Godard, como afirmou Philippe Dubois (2004) sobre a busca no seu cinema: “Buscar saídas, arriscar. Godard fundamentalmente ensaísta. Ensaiar para ver, ‘ver não isto ou aquilo, mas somente ver se há algo a ver’” (p. 289), ou mesmo o sentido de ensaiar como para esboçar –tal qual Vicent Van Gogh ao esboçar a mariposa-caveira que adentrou em seu quarto ao invés de pintá-la, pois, para isso, ele precisaria matá-la, ou tal qual a pessoa que pesquisa ou escreve filosofia esboça em seu caderno de notas os pensamentos que lhes surgem procurando não matar os fenômenos–. Trata-se de uma busca que se constitui numa proposta aberta assim como o atlas Mnemosyne de Aby Warburg, numa tarefa que, segundo Didi-Huberman (2018), opera uma recusa engajada do modelo de conhecimento formado a partir da permanência das “formas fixas” para a busca do conhecimento das “formas moventes” –de uma epistemologia transversal, como já dissemos– através da montagem dos fragmentos até então encontrados; um caráter de inacabamento que perdura, que continua o seu movimento. E essa característica presente no filme A gaia ciência é a do próprio movimento do pensar as imagens.
As insuficientes definições a que chegaram as personagens de A gaia ciência evidenciam justamente a conquista do pensamento pelo conhecimento de um vazio, daquilo que está entre uma coisa e outra, “nesse entretempo do ainda não formado e da forma que não se cristalizou, tendo a imagem, antes mesmo ou como correlato da linguagem, como uma de suas matérias primeiras, primordiais e vitais” (Teixeira, 2015, p. 167). No filme, a importância dessa descoberta é ressaltada por Emile: “Escute, que melhor ideal propor ao homem de hoje, que está abaixo e atrás de si próprio, se não a reconquista, através do conhecimento, do vazio que eles mesmos descobriram?” (Godard, 1967-1969, 1 h 31 m). Ou seja, não se trata de um conhecimento puro e simples acerca de ideias, mas de um conhecimento que é refletido na própria pessoa que se dispõe a conhecer –um autoconhecimento acerca de suas próprias insuficiências–, logo, a propósito de um estudo das imagens, nos alerta a personagem Emile no início do filme: não podemos esquecer da nossa própria autocrítica, afinal.
Bibliografia
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Dubois, P. (2004). Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify.
Font, R. (1972). El Grupo Dziga-Vertov, una experiencia quinquenal. Jean-Luc Godard y el Grupo Dziga-Vertov: un nuevo cine político (pp. 5-17). Barcelona: Editorial Anagrama.
Marie, M. (2011). A Nouvelle Vague e Godard. Campinas: Papirus.
Teixeira, F. E. (2022). Arqueologia do ensaio no cinema-audiovisual brasileiro (formações e transformações). São Paulo: Hucitec Editora.
Teixeira, F. E. (2015). O ensaio no cinema: formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea. São Paulo: Hucitec Editora.
Fuentes
Bense, M. (2014). O ensaio e sua prosa. Revista Serrote, 16.
https://www.revistaserrote.com.br/2014/04/o-ensaio-e-sua-prosa/
Starobinski, J. (2011). É possível definir o ensaio? Remate de Males, 31, pp. 13-24. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636219/3928
Filmografia
Godard, J. (1967). Duas ou três coisas que eu sei dela [longa-metragem]. França: Argos Films, Les Films du Carosse, Pare Films.
Godard, J. (1967-1969). Le gai savoir [longa-metragem]. França, Alemanha Ocidental: ORTF, Bavaria Atelier Gessellschaft.
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Biografia
Patrick Silva Cavalcante
Bolsista CAPES do Curso de Mestrado do PPGMultimeios do Instituto de Artes da UNICAMP e bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) pela UESC, faz parte do Grupo de Pesquisa do CNPQ “AUDIOENSAIO”. Publicou artigos em revistas e ANAIS de eventos sobre o filme-ensaio em Godard. Atualmente, integra o Projeto Coleção História(s) do Cinema com apoio do 5º Edital ProEC – PEX 2023 da UNICAMP.
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Cómo citar este artículo:
Cavalcante, Patrick S. (2024). Prolegômenos para o filme-ensaio Le gai savoir de Godard. TOMA UNO, 12. https://revistas.unc.edu.ar/index.php/toma1/article/view/47084
[1] Presto os meus devidos agradecimentos à CAPES pelo apoio à minha pesquisa (Registro Acadêmico 203625), desenvolvida nos anos de 2023 e 2024, no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), intitulada “A gaia ciência de Jean-Luc Godard e a busca por uma epistemologia ensaístico-revolucionária das imagens-falena”, que teve como resultado este presente artigo. Agradeço ao meu orientador, o Prof. Dr. Francisco Elinaldo Teixeira (IA/UNICAMP), pelo apoio em todas as atividades que executei durante a pesquisa.
[2] A noção do termo protoensaio, cunhado por Francisco Elinaldo Teixeira (2022), se refere às primeiras inscrições ou camadas de uma relação ampla do cinema com o pensamento.
[3] Este artigo faz utilização de linguagem inclusiva de acordo com o Manual de Estilo da Universidad Nacional de Córdoba, sob o critério do uso de substantivos coletivos, termos genéricos e metonímias.
[4] Etimologicamente, o nome Lepidoptera é derivado do grego e significa “asa com escamas”.