Número 12

Año 2024

Natureza, Afetos Pictóricos e Masculinidade Hegemônica em crise: discussões a partir do filme A Torre (2021), de Sérgio Borges

Nature, Pictorial Affects and Hegemonic Masculinity in crisis: discussions based on the film The Tower (2021), by Sérgio Borges 

João Paulo Wandscheer

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, Brasil

wjoaopaulo@hotmail.com

https://orcid.org/0009-0007-3197-8465 

Miriam de Souza Rossini

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, Brasil

miriams.rossini@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-0004-1449 

DOI https://doi.org/10.55442/tomauno.n12.2024.47087 

ARK https://id.caicyt.gov.ar/ark:/s22504524/zcx95gg5p 

Resumo

Este artigo propõe uma discussão sobre as tensões que o longa-metragem brasileiro A Torre (2021), dirigido por Sérgio Borges, provoca em concepções hegemônicas de masculinidade, através de afetos que surgem da relação entre os personagens do filme e natureza. O fazer cinematográfico foi a dimensão que usamos para compreender a forma como o filme desestabiliza paradigmas dominantes. Utilizamos como metodologia Teoria de Cineastas (Graça, Baggio e Penafria, 2015), e como fonte uma entrevista concedida por Sérgio Borges ao festival MixBrasil em 2020, ano em que o filme foi exibido na mostra competitiva nacional do evento. Na ocasião, o cineasta mencionou que a obra retrata o questionamento do protagonista André sobre o modo como a sua masculinidade foi construída. O personagem encontra, em meio ao silêncio e ao ritmo menos acelerado de uma floresta, a possibilidade de olhar para si mesmo e, inclusive, para o desejo que sente por outros homens. Da sua relação com as paisagens naturais que percorre, uma aproximação entre cinema e pintura emerge, possibilitando o surgimento de afetos pictóricos, os quais tensionam não apenas noções hegemônicas referentes ao gênero masculino, mas também a destruição da natureza.

Palavras-chave

Teoria de Cineastas, cinema queer, natureza, afeto, masculinidade hegemônica

Abstract

This article proposes a discussion about the tensions that the Brazilian feature film The Tower (2021), directed by Sérgio Borges, provokes in hegemonic conceptions of masculinity, through affects that arise from the connection between the film's characters and nature. Filmmaking was the dimension we used to understand the way in which the movie destabilizes dominant paradigms. We used Filmmakers' Theory (Graça, Baggio e Penafria, 2015) as a methodology and as a source an interview given by Sérgio Borges at the MixBrasil festival in 2020, the year in which the film was shown in the event's national competitive exhibition. At the time, the filmmaker mentioned that the work portrays the protagonist André's questioning about the way in which his masculinity was constructed. The character finds, amidst the silence and slower pace of a forest, the possibility of looking at himself and also at the desire he feels for other men. From his connection with the natural landscapes in which he wanders, an approximation between cinema and painting emerges, enabling the emergence of pictorial affects, which tension not only hegemonic notions regarding the male gender, but also the destruction of nature.

Keywords

filmmaker’s theory, queer cinema, nature, affect, hegemonic masculinity

Recibido: 05/07/2024 - Aceptado con modificaciones: 20/08/2024

TOMA UNO, Nº 12, 2024 - https://revistas.unc.edu.ar/index.php/toma1/index
ISSN 2313-9692 (impreso) | e-ISSN 2250-4524 (electrónico)

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Introdução

Este artigo utiliza o fazer cinematográfico como um meio de propor discussões sobre os tensionamentos que o longa-metragem A Torre (2021), dirigido por Sérgio Borges, provoca em concepções hegemônicas de masculinidade, através de afetos que surgem da relação entre os personagens do filme e a natureza. Utilizaremos a proposta Teoria de Cineastas como metodologia, uma abordagem que nos permite construir análises e conceitos sobre o cinema a partir do pensamento de um cineasta, expresso em entrevistas ou depoimentos encontrados em outras formas de registro (Graça, Baggio e Penafria, 2015). Nossa fonte, neste trabalho, será uma entrevista concedida pelo diretor Sérgio Borges ao festival MixBrasil em 2020, quando a obra foi exibida na mostra competitiva nacional do evento.

Baseado no romance Coiote (1986), escrito por Roberto Freire, o filme retrata uma crise enfrentada por André, que busca o sossego de uma floresta para se questionar sobre os rumos que a sua vida tem tomado. Ele encontra abrigo em uma cabana de madeira e, durante o dia, caminha entre árvores e nada pelas águas que cortam a mata. André permanece isolado e mergulhado em um silêncio que o auxilia a colocar suas ideias em ordem. A breve visita da ex-esposa e da filha, ainda criança, o motiva a trocar algumas palavras. Entretanto, assim que elas vão embora, André retorna a um estado de quietude. Um encontro, porém, coloca André de frente com desejos reprimidos: enquanto caminha pela natureza, o personagem se depara com um rapaz mais jovem, que demonstra não ter dificuldades de vivenciar a atração que sente por outros homens.

Cineasta e escritor, o diretor Sérgio Borges nasceu em Belo Horizonte, em 1975. Além de ter dois livros publicados, dirigiu cinco filmes de curta-metragem e o documentário de média-metragem Mira (2001). Lançado em 2011, o seu primeiro longa-metragem é intitulado O Céu sobre os Ombros. Além das ideias desenvolvidas pelo diretor ao longo de uma conversa de aproximadamente trinta minutos com o festival MixBrasil, utilizaremos como embasamento teórico o pensamento de Mortimer-Sandilands e Erickson (2010), Connell e Messerschmidt (2013), Seymour, (2013), Marconi (2017), Nagime (2016), Lopes (2016), Louro (2016), Alós (2020) e Costa e Veiga (2021), para discutir questões como noções hegemônicas de masculinidade, o conceito de queer e relações entre a luta queer e o enfrentamento da destruição da natureza. Já para compreendermos a metodologia Teoria de Cineastas, encontraremos base em autores como Aumont (2004), Graça, Baggio e Penafria (2015), Penafria (2020), Ferro (2021) e Baggio (2024).

Sobre a metodologia Teoria de Cineastas

Teoria de Cineastas consiste em uma proposta metodológica que vem sendo desenvolvida a partir de escritos do teórico francês Jacques Aumont. No livro As teorias dos cineastas, lançado em 2002, o autor reúne e sistematiza um conjunto de textos que abordam conceitos sobre o cinema a partir da perspectiva de cineastas considerados cânones na historiografia cinematográfica (Ferro, 2021). Ao longo da última década, essa abordagem tem sido utilizada e constantemente reelaborada por pesquisadores de universidades brasileiras e portuguesas, que compõem o seminário temático intitulado Teoria de Cineastas, da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Cinema e Audiovisual (SOCINE), e o grupo de trabalho também chamado Teoria de Cineastas, da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento (AIM), de Portugal (Ferro, 2021).

As reflexões e os diálogos envolvendo a metodologia, contudo, vêm ocorrendo também através do que pode ser compreendido como uma “comunidade de pesquisa”, em virtude do esforço e da dedicação de um grande número de pessoas, transcendendo o trabalho exclusivo de “grupos institucionais específicos” (Baggio, 2024, p. 1). Teoria de Cineastas busca construir teorias acerca do cinema a partir de um estudo sistemático do “pensamento artístico de cineastas” (Graça, Baggio e Penafria, 2015, p. 21). Considerando o cineasta uma fonte tanto de informação quanto de inspiração, é um modo de produzir teoria próximo do artista (Penafria, 2020). Desde as primeiras décadas da história do cinema, surgem cineastas que se tornam também teóricos, à medida que adotam como parte do processo criativo o ato de refletir sobre a imagem, a palavra, a sociedade, a experiência e as possibilidades de aprendizagem através de um filme: seja de forma mais explícita, seja de maneira menos evidente (Aumont, 2004).

Todavia, buscar o apoio do cineasta não significa dispensar a figura do pesquisador como parte do processo de construção de teorias, posto que organizar e sistematizar dados, informações e ideias também constitui um ato de criação (Penafria, 2020). Procurar fontes externas ao cinema é algo que já acontece, e não coloca em risco a relevância do pesquisador (Penafria, 2020). A abordagem possui caráter científico e consiste em um meio legítimo “para investigar e organizar respostas e eventuais novas problematizações” (Graça, Baggio e Penafria, 2015, p. 30). Ela, inclusive, se revela uma forma de nos aproximarmos dos afetos que atravessaram os processos artísticos da realização de um filme.

Para compreender o modo como Sérgio Borges elabora teorias sobre o seu fazer cinematográfico, partiremos da seguinte pergunta: “Como cria o criador?” (Aumont, 2004, p. 17, tradução nossa). A produção de conhecimento acerca do cinema pode ocorrer através das imagens e dos sons criados pelos cineastas, assim como de suas próprias palavras (Penafria, 2020). Na entrevista concedida ao festival MixBrasil, Sérgio Borges ressalta que não pretendia propor uma única possibilidade de interpretação do seu filme e, sim, sugerir diferentes formas de entender o isolamento em meio à floresta que o protagonista André vivencia.

A intenção deste estudo, portanto, não consiste em elaborar uma perspectiva fixa e rígida acerca do longa-metragem A Torre. Nosso objetivo é sistematizar os depoimentos do diretor do filme para delinear uma análise dos afetos que atravessam a experiência de André na mata. Afetos que surgem da sua relação com a natureza e que colocam em tensão concepções hegemônicas de masculinidade.

Masculinidade Hegemônica em crise

A masculinidade hegemônica não se limita a um único molde, tampouco a um conjunto de expectativas voltadas ao gênero masculino, pois é um conceito composto por diversos aspectos que também estão atrelados a práticas que mantêm e reforçam a dominação dos homens sobre as mulheres (Connell e Messerschmidt, 2013). Preconceitos, violências e desigualdades decorrem de noções dominantes de masculinidade. Ocorrem também situações em que homens recebem salários maiores, atingem maior hierarquia no âmbito profissional e vivenciam uma divisão do trabalho doméstico que lhes encarrega de um número menor de responsabilidades. Entretanto, para que as concepções hegemônicas acerca do masculino permaneçam em uma condição de dominância, os homens também precisam ser monitorados. Desse modo, além da opressão exercida sobre as mulheres, acabam por se estabelecer hierarquias entre os próprios homens (Connell e Messerschmidt, 2013).

Existem múltiplas formas de masculinidade, porém a maior parte delas é colocada em um contexto de inferioridade: homens gays, negros e trans –por exemplo– estão em uma condição social desvalorizada em relação a homens cis, brancos e heterossexuais (Rodriguez, 2019). Raça, sexualidade e transgeneridade são circunstâncias que impactam na formação de arranjos hierárquicos entre indivíduos do gênero masculino. Classe social, idade ou ainda o lugar onde determinado homem reside também constituem exemplos de fatores que influenciam o modo como a masculinidade será tanto compreendida quanto exercida, de maneira que ela não proporciona apenas benefícios aos homens, mas também gera impasses que irão variar conforme o contexto de cada um (Connell e Messerschmidt, 2013).

O filme dirigido por Sérgio Borges, e que estamos analisando, possui o título A Torre, visto que a obra aborda normas sociais que também causam repressões sobre os homens. Para Borges (2020), é possível compreender uma torre como uma fortaleza, algo sólido, da qual se olha a partir de um nível mais elevado, mas que não deixa de ser também uma prisão. O diretor acredita que o masculino está inserido nesse contexto. Existe medo de se infringir a masculinidade e receio em ser considerado inferior por não corresponder às concepções dominantes voltadas ao gênero masculino: afetos que limitam e restringem possibilidades de ser homem.

A criminologia demonstra, através das agressões sofridas pelas mulheres, que a masculinidade hegemônica não está ligada apenas ao monitoramento e à regulação do comportamento das mulheres, mas também a uma busca dos homens por hegemonia (Connell e Messerschmidt, 2013). Tanto o cinema quanto o estudo sobre o fazer cinematográfico permitem levantar provocações que contribuem para uma reflexão acerca da masculinidade e colocam em tensão afetos ainda associados a compreensões hegemônicas referentes ao masculino como, por exemplo, agressividade, violência e uma ânsia por dominação.

O título do longa-metragem também constrói uma relação com a carta A Torre, dos baralhos de Tarot. O significado da carta inclui um contexto de crise e o filme aborda justamente uma crise vivenciada pelo protagonista André, que vem enfrentando conflitos internos ao atravessar seus 40 anos. O personagem está realizando um “olhar para dentro” (6 m 4 s), menciona Borges (2020). Para o diretor, o combate ao machismo também passa pelos homens olharem para si mesmos. A insensibilidade, outra marca ainda socialmente atrelada a noções dominantes de masculinidade, é imposta aos homens e dificulta que eles olhem para seus próprios sentimentos ou, ainda, os expressem. Regulações que reprimem e atravancam afetos, aprisionando, desse modo, os homens em uma torre de regulações sociais.

É em meio à floresta que André encontra maior liberdade. Nela, o personagem dispõe de maior sossego. Ali, ele se distancia da repressão de normas relacionadas ao gênero masculino, encontra um ambiente no qual pode pensar sobre os rumos que a sua vida irá tomar, sobre quem ele será como pai, e sobre a atração que ele sente por outros homens: um desejo que ele ainda está tentando entender e aceitar. A floresta possibilita que André se depare com afetos até então sufocados ou, ainda, sobre os quais ele temia refletir. A mata, em A Torre, se revela o lugar onde os afetos não se restringem: ampliam-se.

André está vivendo uma transformação, que também consiste em parar de relutar para manter a juventude da forma como ele a compreendia; em aceitar que está envelhecendo e entender que ele possui “uma capacidade de ser múltiplo” (16 m 40 s), aponta Borges (2020). O cineasta acredita que o personagem André se encontra em uma idade na qual existe a possibilidade do homem possuir maior maturidade para refletir sobre o que tem feito para o mundo, sobre ser egoísta, dominador e tentar se ver como um herói. E é em meio à natureza que André pode estar despido de normas e conceitos prévios sobre o ser homem (imagem 1). O diretor ainda defende que os homens precisam assumir um outro lugar na vida e menciona que A Torre provoca tensionamentos em relação ao machismo, mesmo que as críticas não estejam explícitas na obra.

 A person standing on a rock

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Imagem 1: Borges, S. (dir.) (2021). A Torre [longa-metragem]. Brasil: Anavilhana. André caminha nu pela floresta.

O filme também tensiona diferentes formas de dominação, pois apresenta uma perspectiva que se distancia da noção de superioridade dos seres humanos em relação ao meio ambiente, e isso inclui as concepções que restringem a compreensão acerca da natureza a uma fonte de recursos a ser explorada, a fim de obter um crescimento econômico infinito, e que caracteriza tanto modelos vigentes de produção industriais quanto a história do sistema capitalista (Costa e Veiga, 2021). A Torre desestabiliza moldes que permanecem predominantes na maneira como a sociedade se encontra constituída.

A obra, entretanto, não apresenta um tom pessimista. Para Borges (2020), o longa-metragem aborda não apenas o fracasso da forma como a masculinidade se estabeleceu socialmente, mas também o desejo de André em olhar para o seu universo interior e atravessar as suas sombras. Outra circunstância que permeia a narrativa de A Torre, segundo o diretor, vem a ser o fato de as mulheres serem induzidas a cuidar dos filhos, diferentemente dos homens, que não costumam ser educados para exercer esse tipo de cuidado –um contexto que pode levar os filhos a se distanciarem dos pais e, consequentemente, acabar causando angústia também ao homem, explica Borges (2020)–.

Embora seja carinhoso e afetuoso com a filha (imagem 2), André ainda se mantém distante dela. Quando recebe a visita da ex-esposa, a qual leva a menina para passar um tempo com o pai, André é convidado para assistir a um evento que ocorrerá naquela semana: a troca de faixa da filha. Mesmo sabendo que a menina adoraria ter a sua presença na ocasião, André permanece em silêncio e dá indícios de que não estará presente. Com sua atitude distante, o personagem acaba magoando as pessoas que o amam. Para além da crise que assola o protagonista, A Torre também sublinha a dor de quem está ao redor dele. Afetos como tristeza, decepção, falta e frustração marcam a narrativa do filme. O personagem causa sofrimento e acaba também sofrendo pelos afetos que não consegue compartilhar com a família, justamente por não estar em equilíbrio com ele mesmo.

A person sitting on a bed with a dog

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Imagem 2: Borges, S. (dir.) (2021). A Torre [longa-metragem]. Brasil: Anavilhana. André faz carinho na filha.

André precisa, portanto, rever suas atitudes como pai. Concepções hegemônicas de masculinidade estão atreladas à forma como ele não sabe lidar com a própria filha, ou com o que ele precisa fazer enquanto figura paterna, para além de prover bens materiais e, até mesmo, carinho quando vê a filha. A ex-esposa, por consequência, acaba ficando encarregada (e sobrecarregada) de um número maior de responsabilidades. Para estabelecer vínculos que não sejam constituídos por afetos como frustração e pelo sentimento de insuficiência, André precisa encontrar um distanciamento ainda maior de noções dominantes voltadas ao gênero masculino que tanto o limitam e atormentam. Inclusive, para poder vivenciar o desejo que ele sente por outros homens, sem sentir-se culpado em relação à filha e à ex-esposa. A aproximação com a natureza vem a ser uma tentativa de se libertar de tais amarras.

Natureza e Diversidade

A Torre possui uma narrativa que pode ser entendida como difusa, na medida em que a sequência de acontecimentos que se desenvolvem no filme conduz a um número maior de “zonas de incerteza” (Gaudreault e Jost, 2009, p. 31). Borges (2008) menciona que a obra “mais sugere do que afirma” (8 m 28 s), abrindo espaço para uma diversidade maior de compreensões e interpretações acerca do que ocorre durante a narrativa. O cineasta ainda acrescenta que o filme é composto por acontecimentos que ele descreve como “minimalistas” (8 m 32 s), um aspecto que se nota através da sensação de que as mudanças que movimentam o filme são sutis.

Conforme aponta Borges (2020), A Torre entra no ritmo das paisagens arborizadas, montanhosas e permeadas por rios: um espaço que rompe com o ritmo das grandes cidades. O diretor compreende que a natureza consiste em um espaço onde André pode se olhar no espelho e se ver nu: a mata pode ser um local onde existe maior liberdade para se tirarem máscaras, aponta o diretor. É em meio à floresta que o protagonista não sente a necessidade de mentir sobre si mesmo. Em contraposição, o diretor ressalta que o cotidiano frenético, característico de centros urbanos que possuem maior dimensão, não proporciona tempo para olhar para si mesmo.

André contempla a natureza, caminha entre as árvores e nada pelas águas que cortam a floresta. As paisagens compostas por árvores e montanhas salientam uma conexão entre cinema e pintura. A imagem também nos proporciona indícios dos afetos que atravessam o protagonista André, de maneira que, da relação que se estabelece entre o personagem e a natureza, surgem o que o pesquisador e teórico queer brasileiro Denilson Lopes (2016) descreve como “afetos pictóricos” (p. 41). Corpo e espaço, corpo e câmera, bem como corpo e espectador são relações das quais emergem os afetos pictóricos.

Composições tradicionais de planos e cenas são elaboradas a partir da presença da figura humana, de maneira que revelam seguir um viés antropocêntrico (Lopes, 2016). Entretanto, espaços, objetos, luz, figurino e a montagem estão entre os diversos artefatos que também constroem a narrativa cinematográfica (Lopes, 2016). A relação com a natureza é um elemento que distancia A Torre de um paradigma antropocêntrico. A floresta nos permite mergulhar tanto nos afetos que marcam o atual momento que André está vivenciando quanto em seus desejos.

Ao longo do filme, André cruza por um rapaz mais jovem (imagem 3). Borges (2020) entende que existem múltiplas possibilidades de interpretar a relação entre os dois personagens. Entre elas, o jovem pode ser tanto um rapaz por quem André sente atração quanto a juventude de André, com a qual o protagonista de A Torre se defronta. O rapaz mais jovem não possui apego a definições em relação à própria sexualidade e faz sexo com diversas pessoas de distintos gêneros em meio à natureza. Um sentimento de libertação que André está buscando.

Imagem 3: Borges, S. (dir.) (2021). A Torre [longa-metragem]. Brasil: Anavilhana.
O rapaz mais jovem e André no topo de uma pedra. Two naked men standing on a rock

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Há filmes que retratam o desejo sexual entre homens através de uma abordagem que busca reconhecimento dentro de ordens hegemônicas referentes a gênero e sexualidade. Já A Torre acaba por colocar em tensão aspectos que sustentam concepções hegemônicas acerca do masculino. Assim, o longa-metragem se conecta a obras cinematográficas que não se adaptam ao status quo e se distanciam de uma tentativa de assimilação, seguindo uma tendência de filmes que desestabilizam normas vigentes e provocam incômodos. Obras que estão inseridas em uma diversidade de possibilidades artísticas e políticas que compõe o que compreendemos como cinema queer (Marconi, 2017).

Podemos apontar como um exemplo do que se entende como cinema queer o longa-metragem brasileiro Tinta Bruta (2018), dirigido por Marcio Reolon e Filipe Matzembacher. O filme retrata a espera de Pedro por uma sentença judicial decorrente de uma agressão que ele cometeu contra um antigo colega de universidade. Pedro, com uma chave entre os dedos, furou o olho do rapaz com um soco. O golpe está atrelado à perseguição da qual o personagem era alvo. A obra coloca em tensão tanto o preconceito voltado à homossexualidade quanto a violência que também existe em atos de intolerância, e que geram respostas também violentas. 

Outro filme que compreendemos como queer é o longa-metragem brasileiro Corpo Elétrico (2017), dirigido por Marcelo Caetano. A obra nos apresenta o cotidiano, as festas e os dias de trabalho em uma fábrica de São Paulo vivenciados por Elias, que se aproxima, durante a narrativa, do seu colega Wellington. Entre os temas abordados estão: sexualidades e identidades de gênero dissidentes, não-monogamia, diversidade racial, amizade e configurações familiares que se diferem do modelo tradicional.

No que se refere à produção de conhecimento localizada no campo político, queer pode ser também entendido como “um gesto analítico”, “uma postura epistêmica” ou ainda um “espaço de articulação” (Alós, 2020, p. 7). Queer é um vocábulo oriundo da língua inglesa, cuja tradução está ligada à ideia de algo estranho. O termo foi historicamente usado com o objetivo de ofender indivíduos que não fossem heterossexuais, mas militantes e teóricos passariam a utilizá-lo não apenas para se afirmarem politicamente, mas também para se referirem a homens gays, lésbicas, pessoas bissexuais e trans de todas as cores que vivenciam uma nova forma compreender e estar no mundo e, assim, afastando-se de paradigmas dominantes (Lopes Louro, 2018). Queer, portanto, vem a ser um conceito que está associado a uma busca por afetos que acabam por colocar em tensão noções hegemônicas de masculinidade e que ampliam possibilidades de existência.

O cinema queer, por sua vez, revela-se, através de A Torre, uma forma de contribuir para a compreensão de que a natureza consiste em um espaço que também pode fazer parte de existências queer: uma perspectiva que torna a luta queer mais verde e, ao mesmo tempo, torna mais queer movimentos sociais em defesa da natureza (Mortimer-Sandilands e Erickson, 2010). As lutas políticas que reivindicam os direitos de minorias sociais, inclusive, dialogam com o combate à destruição da natureza e às crises climáticas, uma vez que também enfrentam modelos de sociedade dominantes (Costa e Veiga, 2021).

Existem, portanto, aproximações entre natureza e movimentos sociais relacionados a grupos minoritários como, por exemplo, mulheres, pessoas negras, comunidades indígenas, crianças, animais e a comunidade queer (Costa e Veiga, 2021). A natureza se revela, portanto, uma forma de unir lutas. A ampliação de perspectivas, inclusive, dificulta que os movimentos ambientalistas, na tentativa de protegerem a natureza e se distanciarem de um viés antropocêntrico, acabem por negligenciar problemáticas enfrentadas pelos seres humanos, como, por exemplo, preconceitos relacionados a gênero, sexualidade, raça, classe social e contextos de colonialidade (Seymour, 2013).

A Torre, além de tensionar a intolerância voltada a homens que sentem atração por outros homens, também retrata formas de prazer que se distanciam da monogamia. Assim como a heterossexualidade, modelos monogâmicos de relacionamento também são impostos e, por isso, consistem em uma norma que toca às lutas políticas queer (Nagime, 2016). O personagem que coloca tais provocações em evidência vem a ser o rapaz mais jovem, com quem André cruza em suas caminhadas pela mata. Em um dia ensolarado, o rapaz descansa sobre uma pedra em frente a um rio, enquanto recebe uma massagem. Do gesto afetuoso, surge a sensação de relaxamento. Há outras pessoas por ali, algumas estão nadando, outras conversam perto da água. A tranquilidade nítida na cena abre espaço para afetos como o carinho e o prazer, à medida que os personagens se beijam e se envolvem em uma orgia (imagem 4).

A person and person kissing

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A close-up of a person and person

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Imagem 4: Borges, S. (dir.) (2021). A Torre [longa-metragem]. Brasil: Anavilhana. Ocorre, na floresta, uma orgia entre pessoas de diferentes gêneros.

A cena de orgia entre o rapaz mais jovem e outras pessoas em meio à floresta vem a ser, de acordo com Borges (2020), uma forma de delinear que, embora o personagem André esteja isolado, romper com a masculinidade da maneira como conhecemos e nos direcionarmos a outras formas de viver em sociedade “se dá no coletivo” (27 m 25 s). Em meio a diversas pessoas, que encontram uma sensação de liberdade maior na natureza, o personagem mais jovem coloca em cena uma pluralidade de formas de expressar afetos.

Considerações finais

A aproximação do fazer cinematográfico através da abordagem teórica Teoria de Cineastas nos possibilitou ampliar perspectivas não apenas sobre sexualidade e os afetos que atravessam o desejo sexual, mas também sobre o cinema e normas sociais. O cruzamento entre as reflexões de Borges (2020) e sua obra fazem emergir análises sobre o filme A Torre que nos oferecem indícios, inclusive, de como enfrentar monitoramentos, repressões e desigualdades que assolam diferentes grupos que fazem parte da sociedade.

Nos momentos finais da entrevista concedida ao festival MixBrasil, Borges (2020) ressalta que o masculino compõe a diversidade, no entanto –para que a pluralidade de fato ocorra– é necessário repensar a relação do masculino com a sociedade. A Torre retrata a crise da masculinidade hegemônica e nos permite ampliar possibilidades acerca do que significa ser homem. Borges (2020) aponta noções em relação à masculinidade que não envolvem uma busca por dominação, insensibilidade, falta de cuidado e a tentativa de ser visto como um herói. O cineasta ressalta que os homens devem encontrar o seu próprio lugar no mundo, em vez de seguir paradigmas repressores para as mulheres e que não deixam de aprisionar também os próprios homens. O filme nos provoca a pensar sobre outros afetos que podem vir a compor noções de masculinidade, e a entrevista do diretor amplia essa perspectiva interpretativa.

A natureza se revela um espaço que possibilita um olhar para si mesmo. Em A Torre, a floresta rompe com o ritmo dos grandes centros urbanos e coloca em tensão a maneira como o sistema capitalista não somente esgota os seres humanos, mas também está atrelado aos fatores que levam à destruição da natureza. A relação dos personagens com as paisagens naturais permite a emergência de afetos pictóricos, que constituem formas do cinema queer se distanciar de um viés antropocêntrico na composição de planos e cenas. Os afetos pictóricos acabam, também, por desestabilizar e desarranjar tanto normas sociais, quanto modelos políticos e econômicos vigentes.

O longa-metragem dirigido por Sérgio Borges potencializa, portanto, perspectivas mais plurais acerca da natureza ao retratar vivências e experiências em meio à floresta que se distanciam de concepções dominantes de masculinidade e envolvem uma entrega a desejos ainda alvos de preconceito e hostilidade. E a obra também nos permite ressaltar que é através do coletivo que se constrói uma sociedade mais igualitária, plural e sustentável.

Bibliografia

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Mortimer-Sandilands, C. e Erickson, B. (2010). Queer ecologies: sex, nature, politics, desire. Bloomington: Indiana University Press.

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https://periodicos.unespar.edu.br/index.php/revistacientifica/article/view/1408 

Penafria, M. (2020). Fazer teoria do cinema a partir de cineastas – entrevista com Manuela Penafria. [Entrevista concedida a] Bruno Leites, Eduardo Baggio e Marcelo Carvalho. Intexto, Porto Alegre, 48, pp. 6-21.
https://seer.ufrgs.br/index.php/intexto/article/view/97857 

Rodriguez, S. S. (2019). Um breve ensaio sobre a masculinidade hegemônica. Revista Diversidade e Educação, 7(2), pp. 276-291.
https://periodicos.furg.br/divedu/article/view/9291 

Quem é quem no cinema. Sérgio Borges. Filme B.
https://www.filmeb.com.br/quem-e-quem/diretor-roteirista/sergio-borges

Filmografia

Borges, S. (dir.) (2021). A Torre [longa-metragem]. Brasil: Anavilhana.

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Biografias

João Paulo Wandscheer

Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Participa do ARTIS —Grupo de Pesquisa em Estética e Processos Audiovisual— CNPq. É mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e, atualmente, desenvolve uma pesquisa sobre cinema queer brasileiro e natureza.

Miriam de Souza Rossini

Doutora (História - UFRGS), Mestre (Cinema - USP). Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e ao Departamento de Comunicação. Coordenadora do ARTIS —Grupo de Pesquisa em Estética e Processos Audiovisual— CNPq. Editora da revista Rebeca. Membro do Conselho Fiscal da SOCINE (2019 a 2023).

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Como citar este artigo:

Wandscheer, J. P. y Rossini, M. S. (2024). Natureza, Afetos Pictóricos e Masculinidade Hegemônica em crise: discussões a partir do filme A Torre (2021), de Sérgio Borges. TOMA UNO, 12. Recuperado de: https://revistas.unc.edu.ar/index.php/toma1/article/view/47087